sábado, 20 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - X

Ladiér me apresentou ao Rubini, seu colega de internato em Santa Catarina e que cursava o científico em Curitiba. Passei a freqüentar a casa dele e me tornei amigo da família. Batizei Paulo, o filho mais novo dos pais do Rubini, fui padrinho de casamento de Sônia, sua irmã. Eu gostava dela e tinha esperança de namorá-la. Uma tarde deparei-me com ela e Renato, amigo comum, sentados e de mãos dadas no espaço em frente à porta do apartamento. Senti um aperto no coração. Embora eles rompessem o namoro, o orgulho me impediu de assumir o lugar do Renato. Além disso, casamento não estava nos meus planos. Ela casou com um advogado e político da República Dominicana que conhecera no Paraguai. Henrique, de quem fui padrinho de crisma, primo do Rubini, trabalhava na Caixa Econômica e freqüentava os bailes na sede do Coritiba FC, de terno e gravata, com a namorada, a futura sogra e cunhada. Ele, Rubini, Klos, Chaim, eu e outros companheiros jogávamos sinuca em um salão na parte superior de um sobrado na Rua XV de Novembro. Henrique passou a se comportar como profissional do taco. Largou o emprego e a namorada. Encafifou-se por uma bailarina da Caverna Curitibana. Passou a viver maritalmente com ela, para desgosto da mãe e da avó católicas. Quando o vi pela última vez, ele gerenciava casa lotérica na Praça Tiradentes.

Defronte ao prédio em que Rubini morava, na Avenida Presidente Faria, próximo ao Passeio Público, havia uma padaria. Adquirimos o hábito de ali entrar quando voltávamos da boemia, comprar pães frescos, quentinhos, sair comendo, conversando e caminhando pela madrugada em direção à minha casa no Juvevê, passando pelo Círculo Militar e subindo a Rua Itupava. O limite era a Rua Ubaldino do Amaral (nome do advogado que assinou o manifesto do partido republicano da província do Rio de Janeiro, juntamente com Silva Jardim, Alberto Torres e outros). Rubini retornava e eu prosseguia. Em uma dessas ocasiões, já na referida rua, onde parávamos para terminar a interminável conversa (não sei de onde vinha tanto assunto) fomos abordados por soldados armados, equipados, roupas e rostos indiferenciados pela escuridão. Recebemos ordem de dispersar. Fiquei pasmo. Só havia nós dois na rua, tudo o mais deserto e silencioso. Mudara o regime. Os militares haviam tomado o governo. Ditadura implantada. A visceral insegurança dos ditadores conduz a esses despautérios. Na imaginação deles, nós poderíamos ser dois rebeldes conspirando contra o novo governo. Os pães seriam artefatos bélicos camuflados. Felizmente, não fomos levados ao DOPS.

Rubini casou com Zélia, em São Sebastião do Paraíso/MG. Compareci às bodas como padrinho. Zélia gostava de tocar violão e cantar. Os dois moravam em Curitiba e tiveram quatro filhos. Na casa deles fazíamos serestas até de madrugada, apesar das crianças. Algumas vezes, lá chegávamos, eu e meus companheiros, já na madrugada e amanhecíamos tocando violão, cantando, bebendo, lanchando, fumando e conversando. Rubini não fumava. O que ele gostava mesmo era de caipirinha (refiro-me à bebida nacional).

Na Rua Augusto Stresser, a 50 metros da minha casa, morava a família do médico Luiz Piloto Carrano, formada pela esposa Dejanir, duas garotas bonitas e um garoto robusto. Lunyr, a filha mais velha do casal, namorou Luciano, irmão do meu amigo Lecy. Compareci ao casamento dos dois e me tornei amigo da família. Eles tiveram três filhos: Lucinyr, Luciano e Michele. Dezenas de anos mais tarde, ao marido de Lucinyr, arquiteto Marco Valério, eu e Jussara confiamos o projeto e a construção da nossa casa em Curitiba, ao lado da casa de dona Isaura, minha sogra. Ele se mostrou competente, caprichoso e honesto. O negócio profissional nos aproximou mais ainda, surgindo daí amizade afluente com os pais de Marco Valério, que sempre nos receberam com atenção e carinho. Depois de alguns anos, vendemos a casa. A sua finalidade se esgotara. Adultos, os nossos filhos já não viajavam com freqüência a Curitiba para visitar a avó. Jussara e eu permanecíamos no Rio sem projeto de morar em Curitiba. A casa se tornou um incômodo. O lado prático preponderou sobre o valor afetivo.

Doutor Carrano era uma personalidade ímpar. Inobstante a diferença de idade, cultivamos forte amizade. A alma está fora da jurisdição de Cronos. Reuníamos para tocar violão, cantar, churrasquear e conversar. Ele gostava das músicas que eu cantava e conservou a gravação de algumas até a sua morte. Dona Dejanir e Beto, filho do casal, abriram outra fenda em nosso plano existencial. Ainda que tenhamos consciência do caráter natural da morte, de entendê-la como passagem para uma nova forma de vida, mesmo assim não conseguimos evitar o sentimento de perda irremediável, de um espaço aberto em nossa existência que não se fecha, mas ao contrário, se soma a outros vazios, desenhando um favo sem mel em nossa alma. Filhos, genros e netos do doutor Carrano e da dona Dejanir sempre estavam presentes quando os visitávamos, o que tornava a reunião festiva com risos, conversas, cantoria, comes e bebes. Assemelhava-se à minha família de outrora. Quando se reuniam meus irmãos, cunhados e sobrinhos, na casa dos meus pais ou na casa de qualquer deles, era sempre uma festa, com muita conversa, riso, disco na vitrola e dança, ainda que o espaço fosse pequeno. Minha irmã Adília e eu arriscávamos passos do tango argentino. Parecia que ninguém tinha problemas na vida. A nossa pobreza material não era óbice à alegria, a momentos felizes.

O doutor Carrano ensinou hipnose médica a mim e à minha amiga Terezinha, dentista e poetisa. No consultório dele, à Rua Dr. Muricy, centro de Curitiba, as lições eram ministradas e os exercícios executados. Terezinha pouco utilizou a hipnose no consultório. Disse-me que o processo, cuja finalidade era anestesiar o paciente, exigia muito tempo o que implicava demora no atendimento da clientela. Quanto a mim, hipnotizei poucas pessoas. No escritório do doutor Magalhães, em São Paulo, onde advoguei enquanto estudava na USP, havia um rábula chamado Pedro. A sobrinha dele convidou-me para assistir a um espetáculo no auditório do colégio em que estudava. Certo professor iria hipnotizar alunos. Quando ele perguntou se alguém da platéia sabia hipnotizar eu me apresentei, pois a minha amiga o informara a respeito. Subi ao palco e escolhi uma aluna da platéia que me pareceu receptiva. Ela aceitou bem as sugestões. Apesar da gritaria do professor ao hipnotizar outro aluno, cumpri os passos do processo com voz suave. Êxito absoluto. Na semana seguinte, a sobrinha de Pedro retornou noticiando os comentários dos alunos do colégio sobre a minha façanha. Aconselharam-na a evitar sair sozinha comigo tendo em vista o risco de ser hipnotizada. Disse-lhe que o processo dependia do consentimento e que a pessoa hipnotizada resistiria diante de qualquer sugestão para prática de ato contrário ao seu perfil ético.

Frustrado o projeto de cursar engenharia, resolvi estudar inglês. As aulas com o professor dos primeiros estágios eram divertidas; com a professora dos estágios seguintes, nem tanto. Loira, bonita, solteira, a moça não tinha magnetismo pessoal, nem sensualidade. Beleza marmórea. Os meus olhares a incomodavam. Eu a mirava como se admira a uma escultura grega, sem desejo. O pai vinha buscá-la no final das aulas. Zelo paterno.

Com uma defasagem de quatro anos em relação aos meus colegas de ginásio, alcei ao nível universitário. Durante os 6 anos do curso (incluindo o preparatório na própria faculdade) só duas vezes, com longo intervalo entre uma e outra, regalei-me com arroz e ovos fritos no restaurante da faculdade onde os estudantes se acotovelavam, comiam, bebiam, fumavam e conversavam. O espaço era acanhado, pouco iluminado e enfumaçado. Ao pagar a despesa era como se eu houvesse cometido uma extravagância. A regra era voltar para casa com o estômago nas costas. Às vezes, eu parava na lanchonete Acrópole, na Rua XV, comia uma inigualável fatia de pizza feita na hora acompanhada de um copo de vitamina batida com uma bola de sorvete. Nunca mais encontrei pizza tão deliciosa: assada no ponto ideal, fatia generosa, quentinha, alta, macia, flexível, queijo derretendo sobre o tomate desfiado. A fome encontra delícia no alimento em que o paladar do saciado nada sente além do ordinário.

A mensalidade do curso de direito pesava no bolso. As aulas para mim eram cruciais, pois não havia poupança para adquirir livros, muito menos calças jeans que começavam a entrar na moda, raras, sem fabricação nacional ainda, oferecidas por Nicolau, colega de turma. Meu aprendizado dependia das aulas e da biblioteca. O emprego na cervejaria deixava pouco tempo disponível. Boemia só no final do mês, na sexta-feira, depois das aulas. Certa vez furei o esquema. Da boemia fui direto para a cervejaria. Cheguei às 7,00 horas, quando começava o expediente (terminava às 17,00 horas). Entrei pela porta principal, subi no balcão e nele caminhei como se fosse passarela, chutando canetas, blocos de pedidos e de notas fiscais. Ao termo, saltei e fui para a mesa em que trabalhava como correspondente. Abusara da bebida. O chefe da seção me poupou. Eu poderia ser demitido por justa causa. Fui alvo de zombaria.

Em plena ditadura, fui convidado a participar de reunião estudantil. Os colegas esperavam que a minha atitude positiva em sala de aula fosse a mesma em outros lugares. Acreditavam, assim, que o nosso diretório acadêmico estaria bem representado. O ambiente fervilhava. Discursei por tempo curto, sem empolgar. A minha ignorância dos fatos era imensa; a minha distância da política era enorme. Absorviam-me as preocupações com a subsistência da família, com a faculdade e o emprego. Ademais, eu apoiava o golpe de 1964, necessário à ordem no país. Parte considerável da sociedade brasileira também apoiava a intervenção militar (igreja católica, famílias, mulheres, empresariado, imprensa, políticos). Jango e os seus partidários estavam bagunçando o coreto. Eu pouco me importava com direita ou esquerda. Eu queria tranqüilidade para trabalhar, estudar, fazer minhas serestas e viver em paz com minha família e amigos. Politicamente alienado.

Paulo e Luis Cassiano eram como irmãos siameses, sempre juntos no trabalho e na diversão. No Simca Chambord de Paulo rodávamos em Curitiba e no litoral paranaense. Ele instalou uma sirene e a fazia soar na praia de Matinhos. A polícia o prendeu, mas não conseguiu localizar o aparelho e o liberou. Eu me tornei amigo da família. Em torno da mesa, pai, filhos, netos, amigos e a mãe de Paulo a nos servir bifes suculentos. Luis namorava Madalena, minha professora de história no curso científico. Reuníamos na casa dela para tocar violão, cantar e conversar. Lá comparecia Mara, vizinha. Com ela engatilhei namoro platônico, indefinido. De São Paulo eu escrevia para ela. A irmã era casada com um colega da faculdade.

Lothário e Gerhard, filhos de alemães, falavam alemão. Na casa do Lothário provei um tipo miúdo de batata que se comia com casca. No seu fusca circulávamos em Curitiba e nas praias. Formávamos um grupo de rapazes e moças. Certa noite, fria e sem luar, no descampado da parte alta da cidade, nas imediações de onde hoje está situado o Jardim Botânico, tocávamos violão e cantávamos quando chega a polícia. Gisela, irmã do Gerhard, enfrentou os policiais: “Não estamos fazendo nada de errado; estamos longe da cidade e nos divertindo; somos todos de boa família”. Temendo a violência policial, eu me identifiquei com a carteira de solicitador acadêmico expedida pela Ordem dos Advogados. Pedi calma a Gisela. Foi pior. Ela ficou mais agressiva. Então, um dos policiais, já perdendo a paciência, apontou em certa direção e disse: “Estão vendo ali? Aquilo é uma igreja. O padre telefonou reclamando que vocês estão fazendo baderna e não o deixam dormir”. Nós não tínhamos visto a igreja às escuras. Os ânimos serenaram. Saímos mansamente sob vigilância dos policiais.

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