domingo, 6 de agosto de 2023

IDEOLOGIA & TECNOLOGIA

O presidente da república nomeou cidadão brasileiro, economista, professor universitário, para dirigir o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A média corporativa nacional oposicionista taxou essa nomeação de ideológica. Na opinião dos jornalistas, a nomeação tinha por escopo a manipulação de dados a favor do governo. 
Manipular significa fazer alguma coisa com a mão. O professor foi nomeado para trabalhar com o cérebro, não com a mão. Certamente, a crítica usou o verbo no sentido figurado: forjar. A opinião dos jornalistas é injuriosa, pois, pressupõe a desonestidade da pessoa nomeada. 
A menção ao fator ideológico enseja algumas considerações. 
Ideologia significa [I] tratado das ideias [II] ciência do pensamento que privilegia o conteúdo das ideias [III] arcabouço das ideias de uma pessoa [IV] conjunto das ideias conexas vigentes no grupo, na classe, no povo e/ou na época, segundo convicções filosóficas e religiosas, valores éticos e estéticos, interesses políticos, sociais e econômicos. Nessa extensão conceitual enquadram-se: [1] as ideologias: (i) burguesa liberal democrática (ii) proletária social democrática (iii) nazifascista autocrática (iv) religiosa hegemônica cristã, judia ou islâmica [2] as atividades: (i) dos governos democráticos e autocráticos (ii) dos partidos políticos. 
Do exposto, vê-se que o aspecto ideológico é intrínseco ao ato de nomeação atacado pelos jornalistas. A partir do desdém de Napoleão Bonaparte em relação aos doutrinadores do seu tempo, os termos “ideólogo” e “ideologia” assumem conotação pejorativa. Karl Marx apelidou de ideologia a determinação da consciência pela base material da sociedade. O conceito marxista denota (i) concepção do mundo compartilhada com o grupo e parcela da sociedade (ii) discordância com a concepção do mundo do outro grupo e da outra parcela da sociedade. O marxismo levanta a questão da ideologia como tecido de mentiras, engodo, mistificação a ser desmascarada. 
A crítica dos jornalistas sugere que a referida nomeação revestiu caráter ideológico marxista. No entanto, nomear é ato administrativo rotineiro expedido na forma da lei. Invertido o ângulo da apreciação, verifica-se que a crítica revelou a ideologia burguesa liberal dos jornalistas. Cabe lembrar: as constituições jurídicas dos estados são ideológicas, lato sensu, pois, refletem as ideias do legislador constituinte, seja ele singular (monarca, ditador), particular (classe, grupo civil, militar, religioso, misto) ou universal (povo). Ainda que adotada coletivamente numa assembleia, ideia é produto da atividade cerebral de cada ser humano, quer na solidão, quer na convivência. Portanto, carecem da faculdade de pensar: a sociedade, o estado, a pessoa jurídica e demais instituições. O pensamento coletivo é uma ficção. Real é o compartilhamento de ideias no seio de uma coletividade; convergências, divergências, consenso. A inteligência artificial opera com ideias geradas no cérebro natural. 
O caráter técnico da nomeação também enseja algumas considerações. 
Técnica é modo de fazer as coisas mediante regras e instrumentos adequados. Influi na vida doméstica, social, econômica e política. Há técnica para domesticar animais selvagens, fabricar bomba atômica, manipular remédios, iludir a massa popular, desferir golpes de estado, construir casas, preparar alimentos, transmitir conhecimentos, pintar quadros, tocar piano, navegar et caetera. As técnicas se aperfeiçoam. Serve de exemplo a evolução: da tecelagem doméstica para a fabril, da tração animal para a mecanizada, do telefone com fio para o celular, do avião monomotor para a nave espacial. Inquietude, curiosidade, necessidade, utilidade, interesse, movem a inteligência na criação de técnicas para o aproveitamento dos recursos naturais e do potencial humano.
Na estrutura administrativa do estado, compete ao chefe de governo colocar pessoa da sua confiança no cargo público de livre nomeação, forma válida de evitar desvios, rebeldias e entraves. O critério é político. O fator técnico auxilia a escolha, mas, não é determinante. No processo judicial, por exemplo, o laudo do perito ajuda a esclarecer os fatos, mas, ao juiz cabe a decisão do litígio à vista dos demais elementos de prova. A chefia do órgão técnico deve estar afinada com a chefia do governo. Isto contribui para a harmonia interna, a eficiência do serviço e o respeito à hierarquia. As decisões do poder executivo não ficam adstritas obrigatoriamente aos dados técnicos. A visão técnica, ainda que profunda na sua área, restringe-se à esfera do especialista e situa-se aquém da visão do governante que tem, diante de si, o mais vasto panorama dos problemas da nação. "Questões técnicas não podem ser negligenciadas, mas, tampouco são capazes de fornecer toda a resposta" (John Henry). 
Geralmente, o resultado do trabalho técnico é apreciado de acordo com o contexto na direção da totalidade. A democracia exige cautela ante a falácia tecnocrata. O uso repetitivo, regular e metódico da técnica pode gerar uma visão de mundo. Nesta hipótese, o órgão técnico assume vestes ideológicas. A técnica deve servir ao bem comum e ao desenvolvimento da nação. A tecnologia cumpre esse papel como tratado geral do fazer humano e como aplicação dos conhecimentos científicos à produção social e econômica. O poder social exercido pela imprensa e instituições privadas influi nas decisões do poder estatal constituído. O peso dessa influência depende da capacidade do governante de absorver as pressões internas e externas. Ao governante cabe decidir sobre a oportunidade e a conveniência do uso dos dados recebidos. O poder estatal constituído e o poder social instituído estão limitados pela ordem jurídica. No Brasil, atualmente, com o retorno dos militares à caserna, só o Banco Central permaneceu acima do poder estatal constituído, ex vi da inconstitucional lei complementar 179/2021, que lhe concedeu autonomia soberana absoluta.

Assembleia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
Brugger, Walter. Dicionário de Filosofia. SP. Pedagógica Universitária. 1977. 
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