domingo, 14 de maio de 2023

SILÊNCIO COMPULSIVO

Desde a infância, ouço opiniões sobre as minhas atitudes, escolhas, inteligência, capacidade mnemônica. Ao refletir sobre isto, constatei que, em algumas ocasiões, eu ouvi sem nada responder. O silêncio tinha sido a reação involuntária decorrente, quiçá, de algum mecanismo psicossomático inibidor. “Eu Interior”, “Anjo da Guarda”… quem sabe? 
Jovem estudante de direito em Curitiba (1964), eu discutia, na casa do meu tio, com um major reformado do exército sobre o golpe civil/militar. A certa altura ele diz: “Eu sempre desconfiei que você era meio vermelhinho”. Nada respondi. 
O presidente do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio de Janeiro baixou instrução para que os juízes visitassem os presídios (1985-1986). Juízes da capital insurgiram-se. O grupo dirigiu-se ao gabinete do presidente a fim de explicar as razões da insurgência. Quando terminei a exposição oral, o presidente diz: “Você fala como um político”. Nada respondi.
No Congresso da Magistratura Nacional em 1986 (Recife/PE) participei de forma avulsa porque não me incluíram no grupo que representava a magistratura fluminense. Despesas por minha conta. Apresentei e defendi 16 propostas para encaminhamento à Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988). As comissões temáticas eram presididas por desembargadores. Numa delas, quando terminei a minha exposição, o presidente do TJ de São Paulo, postado em pé ao meu lado, olha para mim e diz: “Interessante a preocupação dos juízes novos com a moralidade”. Nada respondi. Em outra comissão, quando eu defendia a proposta de incluir na futura Constituição o direito de voto dos juízes vitalícios nas eleições dos órgãos de direção do TJ, o respectivo presidente cassou-me a palavra: “Você não pode intervir na votação”. Nada respondi. 
Nos corredores do fórum da capital e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (1988-1998) ouvi que me consideravam “maior constitucionalista do Brasil”. Havia notáveis constitucionalistas no Rio, São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Ceará e Pernambuco, merecedores desse generoso conceito. Nunca me considerei superior a eles. Apesar disto, houve reação ciumenta a essa fama local. Certa vez, dirigindo-se a mim, braço esticado, balançando o dedo indicador, fisionomia dura, um juiz e professor mais novo do que eu na idade, na judicatura e no magistério superior, diz: “Lima, eu não acho que você está com essa bola toda”. Nada respondi.
Reunião de pais no apartamento de casal amigo na Redentor, em Ipanema. 1991. Assunto: aumento do preço das mensalidades escolares. Advogado, eu falava sobre medidas judiciais cabíveis. Uma das mães sorriu com simpatia e de modo educado, diz: “Você fala como poeta”. Nada respondi.
Em Curitiba, na casa de um amigo e compadre, juiz do tribunal de alçada do Paraná (1990), recordávamos nossas judicaturas no interior daquele estado quando, em certo momento, a esposa dele diz: “Você era um juiz bom de briga”. Nada respondi. 
Naquela época, tal opinião circulava pela magistratura paranaense. A seguir, cito alguns eventos que contribuíram para formá-la. 
1. Jantar da magistratura. Dia da Justiça. Dezembro/1971. Acompanhado de três juízes, eu me dirigi ao Corregedor e pedi brandura no caso do juiz substituto de Foz do Iguaçu. Esse juiz respondia a processo disciplinar porque, fora das suas atribuições, saíra em diligência policial até a comarca de Cascavel a fim de prender o réu que ele havia condenado. O Conselho da Magistratura (CM) foi rigoroso. Sem garantia de vitaliciedade, o juiz substituto perdeu o cargo.
2. Correição na vara cível da comarca de Pato Branco. 1972. Ao constatar corrupção da escrivã e condescendência do juiz titular, relatei o fato por escrito ao TJ que decidiu pela remoção: (i) da escrivã, para comarca vizinha (ii) do juiz titular, para comarca próxima da capital (iii) minha, para circunscrição longe da capital, na fronteira com o Paraguai. 
3. Correição no cartório do registro de imóveis de Castro. 1973. Recolhimento das custas da cédula rural destinadas ao juiz de direito. Eu fiz a correição e recebi as custas. O juiz titular da comarca, ao voltar das férias, mandou oficial de justiça me conduzir ao gabinete. Mandei o oficial retornar à origem e levar breve e pouco amistoso recado ao meu colega de toga. Quando minha disponibilidade permitiu, compareci ao fórum e tomei conhecimento do assunto. O juiz titular exigia que eu lhe entregasse o dinheiro das custas porque a correição devia ser feita por juiz de direito e não por juiz substituto. No seu gabinete, exibindo o seu corpanzil, bufando, tentou me intimidar. Ante a minha peremptória recusa, representou contra mim. Tese da minha defesa: a expressão juiz de direito usada na lei, refere-se ao juiz togado, indiferente se titular ou substituto. O CM decidiu ser válida a correição feita por juiz substituto no período da efetiva substituição. 
4. Centenas de ações cíveis estocadas nas comarcas de Pato Branco e Coronel Vivida. Causa: lerdeza dos juízes titulares. Movimentei todas mediante despachos e sentenças. Os juízes titulares interpretaram o meu trabalho como prejudicial à imagem deles e também como esperteza para minha ascensão na carreira. Tal opinião desmoronou quando me desliguei da carreira no Paraná. Aprovado no concurso público, ingressei na magistratura do Estado da Guanabara (1973).
A minha produtividade acima do padrão incomodou também alguns colegas cariocas. Nesse quesito (produtividade) apenas dois juízes igualavam-se a mim: (i) um da turma anterior à minha, oriundo da magistratura catarinense (ii) outro da minha turma, oriundo do ministério público gaúcho. Ambos, pelos nomes, descendiam de alemães. Os juízes incomodados tranquilizaram-se quando, bem perto de ser promovido a desembargador por antiguidade, eu me aposentei voluntariamente (1990). Faltavam ainda 18 anos para a minha aposentadoria compulsória. Carreirismo burocrático, ambição, preguiça, inveja, ciumeira, hipocrisia, caracterizam os barnabés de toga.
Reunido na minha casa em Penedo/Itatiaia/RJ no ano de 2012 com casal da década de 1960, eu falava das ocorrências daquela época quando o meu amigo mostrou-se admirado pelo volume das recordações: “Você tem memória de elefante”. Nada respondi. Ainda funciona aquele involuntário movimento interno que gera em mim o silêncio compulsivo.

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