domingo, 21 de maio de 2023

CANCELAMENTO

Na sessão do dia 16/05/2023, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por unanimidade, cancelou o registro da candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol, deputado federal eleito pela colônia fascista do Paraná. A decisão veio assentada na Constituição da República (direitos políticos), nas leis complementares 64/1990 (inelegibilidades) e 135/2010 (ficha limpa) e nos seguintes itens da vida pregressa do candidato: (i) condenações às penas de advertência e censura em processos disciplinares (ii) 15 processos disciplinares inacabados cujos procedimentos foram interrompidos em razão da exoneração voluntária (iii) fatos públicos e notórios de suma gravidade. Os juízes entenderam que o objetivo da voluntária exoneração foi o de escapar da inelegibilidade prevista nas leis complementares. 
Fugir da polícia não faz do bandido um inocente que merece ficar impune. A fuga não configura justa causa para extinguir a punibilidade. Isto vale também para o funcionário que pede exoneração do cargo público para fugir da punição. Amparado nas garantias constitucionais, o funcionário tem o individual direito à exoneração voluntária, ainda que estejam em trâmites processos disciplinares. Embora exonerado, ele responderá pelas consequências das suas escolhas e dos seus atos. Do acórdão do TSE, verifica-se que o direito de pedir exoneração não amparou a intensão do procurador de fugir da incidência da lei que comina a pena de cancelamento do registro da candidatura. A exoneração situa-se na instituição à qual o deputado pertencia. O cancelamento do registro da candidatura situa-se na justiça eleitoral. Cada qual no seu quadrado. 
Todo cidadão deve exercer os seus direitos em sintonia com as normas éticas e jurídicas vigentes na sociedade e no estado, sem abuso, sem excesso, sem malícia. Na justiça eleitoral, à vista da sua especial natureza e grande importância para a nação, os alicerces dos julgamentos são: (i) a prova (ii) os indícios e presunções (iii) a livre apreciação dos fatos. A preservação da lisura do processo eleitoral é missão primordial. A abundante prova dos graves atos ilícitos do então procurador convenceu os juízes de que (i) houve fraude à lei (ii) havia procedimentos no devido processo legal que apontavam para a exoneração compulsória (iii) este fato tornava o procurador inelegível.
Nota-se no acórdão nebulosidade em torno do processo e procedimento. Processo é noção dinâmica, modo ou método de se fazer alguma coisa em determinada direção mediante regras ordinárias, técnicas e/ou legais (construção civil, ensino/aprendizagem, cirurgia). No direito, o processo tem seus trâmites sob controle da autoridade pública e tem por escopo elaborar normas, resolver problemas e solucionar conflitos. Isto se faz mediante sequência de atos orientados por regras de cumprimento obrigatório. No sistema brasileiro destacam-se três tipos de processo jurídico: [1] parlamentar (legislativo + impeachment) [2] administrativo (funcional + disciplinar) [3] judicial (civil + penal + trabalhista + eleitoral). Em comum, esses tipos têm os seguintes procedimentos: sindicância, inquérito, postulação, instrução e julgamento. Cuida-se do devido processo legal garantido pela Constituição da República. Sindicância e inquérito são procedimentos preliminares que integram o processo de jurisdição contenciosa e que têm por objetivo a busca de elementos de prova da materialidade e da autoria dos fatos noticiados. 
A finalidade do processo frustra-se quando a marcha dos procedimentos preliminares ou dos procedimentos principais é interrompida (arquivamento sem exame da questão central). Foi o que ocorreu com os 15 processos disciplinares instaurados contra o procurador mencionados no acórdão. A marcha ficou prejudicada pela exoneração voluntária. A questão central dos respectivos processos ficou pendente de julgamento por tempo indeterminado. O ex-procurador pretende tirar proveito da situação que ele mesmo provocou. Todavia, há óbice a essa pretensão: o universal juízo ético e jurídico “a ninguém é lícito se aproveitar da própria torpeza” (turpitudinem suam allegans non est audiendus).
Da real, grave e dolosa conduta do postulante ao registro da candidatura presume-se culpa e não inocência. A presunção de inocência é instituto da política do direito criminal expresso na garantia da liberdade do réu até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Esse preceito constitucional supõe trâmites de um processo penal. A sua aplicação cinge-se, pois, à esfera criminal, ou seja: não inclui as esferas civil, comercial, trabalhista e eleitoral. A oposição inocência X culpa envolvida na norma constitucional relaciona-se a crime, castigo e processo penal. Antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o réu é considerado culpado pelo juiz ou pelo tribunal que o condenou. A partir daí, a presunção contida em abstrato na norma constitucional colide com a concreta afirmação do veredicto judicial. Inobstante, a garantia da presunção de inocência prevalece ex vi legis até o esgotamento das vias recursais. 
Socialmente, fora do devido processo legal, mas, com efeito moral e repercussão material e profissional, pessoas são consideradas culpadas vox populi. Isto, às vezes, causa danos irreparáveis e enseja queixas por injúria, difamação ou calúnia. 
A lei complementar citada no acórdão refere-se ao processo administrativo disciplinar (pad) sem restrição. A indevida distinção feita pelo acórdão, ainda que implícita, entre pad lato sensu e pad stricto sensu é artificiosa, pois, afronta regra da hermenêutica jurídica: “Quando a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir”. Ao incluir na redutora expressão stricto sensu os procedimentos do cerne do processo (postulação, instrução e julgamento) o acórdão excluiu os procedimentos preliminares (sindicância, inquérito) e, assim, feriu a lógica jurídica processual. O processo é unidade jurídica teleológica que não se confunde com a diversidade dos atos sequenciais que o dinamizam (procedimento). 

Nenhum comentário: