sexta-feira, 24 de junho de 2022

PALAVRAS

O site Brasil 247 publicou artigo da jornalista Denise Assis sobre o fato de o presidente Jair Bolsonaro tratar de bosta o jornalista Ricardo Noblat (21/06/2022). O motivo desse tratamento foi a adição feita por Ricardo da frase “tiro no peito” ao comentário do jornalista Guga Noblat sobre o “tiro no pé” executado por Jair. Na opinião da articulista, o linguajar do presidente (i) é incompatível com a liturgia do cargo e (ii) ofensivo a toda a imprensa. 
Nas esferas civil, militar e religiosa há expressões típicas com significados restritos. A linguagem científica é misteriosa para o vulgo. A linguagem jurídica parece esotérica a quem não é do ramo. A linguagem mística é própria dos iniciados. Os membros de agremiação têm, às vezes, linguagem codificada que só eles entendem. Carioca, paulista, sulista, nortista, nordestino, cada qual tem a sua gíria. Lidar com palavras nem sempre é fácil. Cada palavra pode ter dois ou mais significados e diferentes aplicações. Os pensamentos nem sempre são verbalizados adequadamente. Os sentimentos nem sempre são expressados sinceramente. A vontade nem sempre é manifestada livremente. A palavra é veículo da verdade e da falsidade, de intenções boas e más. O contexto no qual ela é utilizada influi na compreensão do seu significado e do seu propósito. 
No meio social, palavras consideradas repulsivas ou chulas segundo os costumes de uma época, são aceitas em época posterior. Atualmente, palavras outrora repulsivas como “bosta”, “merda”, “tesão”, “foda”, “colhões”, “filho-da-puta”, “puta-que-o-pariu”, são usadas dentro e fora do ambiente doméstico, em entrevistas, na literatura, em filmes e peças de teatro, na rede de computadores. Ouve-se dos descontentes e incomodados: “Esse governo é uma bosta”. “O inverno é uma bosta”. “A emenda ficou uma bosta”. No consultório, médica sexagenária, culta, profissional respeitável, enquanto me examinava disse: “O diabetes é traiçoeiro e filho-da-puta”. O linguajar licencioso é proibido nos lugares onde o decoro é exigido (igrejas, escolas, bancos, emissoras de rádio e televisão, órgãos legislativos, tribunais). Apesar da tolerância social moderna, há famílias que conservam a moralidade e a religiosidade tradicionais. 
No quartel do material bélico do Bacacheri, bairro de Curitiba/PR, onde eu servia como cabo do exército (1959), havia um capitão de cavalaria que usava de modo natural e rotineiro a palavra bosta diante de erro ou contrariedade. Ao sair da sala para as refeições ou cavalgar, o capitão dizia que ia “pastar”. Ele usava o vocabulário da arma a que pertencia. Oficial de infantaria diria que ia “marchar”; paraquedista, que ia “saltar”; de comunicações, que ia "telegrafar"; de artilharia, que ia “atirar”.
Jair era oficial de artilharia. Bala combina com essa arma mais do que bosta. Ainda que se comporte como cavalo, Jair não pode invocar a gíria da cavalaria como justificativa para usar a palavra bosta contra civis. Ao usá-la com o significado comum de excremento, ele injuriou o jornalista e poderá ser processado criminalmente. A injúria foi direta e pessoal. Descabe a ampliação do sujeito passivo. O cidadão Ricardo é que foi ofendido e não a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Se o presidente da república, intencionalmente, violar a constitucional garantia de liberdade de imprensa, a ABI terá legitimidade para processá-lo.
O jornalismo incomoda todo aquele que tem contas a prestar à sociedade e ao estado. Jornalistas têm sido perseguidos, maltratados e mortos em decorrência do seu trabalho útil e honesto. No cruel episódio do Vale do Javari, afigura-se infeliz e equivocada a opinião do vice-presidente Hamilton Mourão de que o jornalista britânico “entrou de gaiato”. O jornalista estava no barco não por acaso e nem por travessura e sim porque era o meio regular e habitual de transporte naquela região. Isto facilitou emboscá-lo. O produto do seu trabalho, se divulgado, certamente teria repercussão nacional e internacional, o que desagradaria a todos que ilegalmente exploram a Amazônia e invadem as terras indígenas. Daí, o interesse do “narco-negócio” (royalties para o prefeito de Benjamin Constant) e demais mantenedores de negócios ilícitos na região, em eliminar os dois “malvistos”: o indigenista e o jornalista.  


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