domingo, 13 de setembro de 2020

LIBERALISMO x SOCIALISMO

A notícia de que Caetano Veloso, renomado e excelente compositor e cantor baiano, ícone da música popular brasileira, saltou do barco do liberalismo para o barco do socialismo, alvoroçou o meio artístico e intelectual. As doutrinas voltaram à baila. O artista foi convencido das consequências funestas do liberalismo narradas por teóricos da esquerda. O sufixo “ismo” indica sistema. Liberalismo = sistema  calcado na liberdade = conjunto de ideias e práticas liberais permanentes e sistemáticas no campo individual, social, político e econômico. 

As letras das músicas desse compositor revelam inteligência lúcida, sensibilidade, independência artística, reflexão sobre matéria social e política. Isto não goza da simpatia de governo autocrático. Em 1964, o estado brasileiro havia recaído no fascismo. Esse tipo de movimento político pauta-se pela intolerância, violência, ódio, censura; direitos humanos condicionados à função social; feixe de deveres cujo descumprimento acarreta prisão, tortura e morte. Caracterizam o estado fascista: [i] autoritarismo e militarismo [ii] repúdio ao liberalismo, ao socialismo e à democracia [iii] pensamento único imposto à sociedade (ausência de oposição) [iv] concentração dos poderes no Executivo (legisla por decreto-lei) [v] controle das liberdades públicas e da economia [vi] conciliação do capital e trabalho (ausência de antagonismo). A livre iniciativa fica sob tutela do estado. Interesse público e coletivo acima do interesse individual e privado. À revelia do povo, o Executivo (i) interpreta o interesse nacional (ii) estabelece a política de segurança nacional (iii) traça as diretrizes do desenvolvimento. Elite econômica conforma a elite política, atrai a elite intelectual, condiciona a elite judiciária, recruta a elite sindical e sufoca as aspirações dos trabalhadores e das minorias. 

À semelhança de outros brasileiros naquela quadra da história do Brasil, o mencionado compositor também deixou o país para escapar das teias do fascismo. Natural, pois, que amasse a liberdade. Numa dimensão cósmica, define-se liberdade como irresistível movimento no tempo e no espaço: (i) da força que está na origem do universo (ii) das forças fundamentais da matéria (iii) da força que gera, determina e conserva os seres vivos. Numa dimensão cultural, define-se liberdade como o movimento no tempo e no espaço das forças humanas em direção a fins materiais e espirituais. Desse movimento, resultam boas e más ações; algumas, criminosas. O humano tem a natural necessidade de agir, realizar sua vontade, manifestar seus pensamentos, expressar seus sentimentos. A função legisladora da razão, com fulcro no conhecimento e na vontade, regula essa necessidade, disciplina a liberdade mediante princípios e normas éticas e jurídicas que formula. A razão classifica o que entra na categoria do bem e o que entra na categoria do mal, apesar do relativismo. O indivíduo é livre para cometer todos os crimes, porém, não tem o direito de fazê-lo. 

Desonestidade, abuso, desvio, maldade, efeito ruim, acontecem sob o império da liberdade e sob o império da igualdade, tanto no estado liberal como no estado social, tanto à direita como à esquerda. Resultam mais da face demoníaca da natureza humana do que da teoria. Posso usar o copo tanto para beber água como para atirá-lo na testa do meu opositor. Não se há de culpar o copo. Olhar retrospectivo para a história dos últimos 300 anos da civilização ocidental evidencia os horrores do liberalismo, do socialismo, do fascismo e do nazismo quando tais sistemas são postos em prática por pessoas de mente doentia, egoístas, ambiciosas, desprovidas de senso moral e de espírito humanitário. Na democracia, nem tudo é bom. Na autocracia, nem tudo é mau. Nos estados nazifascistas houve boas obras, bons serviços, prosperidade e desenvolvimento (1920/1940). Esses estados tiveram larga aceitação popular como aconteceu na Itália (Mussolini), Alemanha (Hitler), Turquia (Kemal), Polônia (Pilsudski), Portugal (Salazar), Brasil (Vargas), Argentina (Perón). 

A liberdade política consiste na possibilidade efetiva de o povo exercer a soberania, organizar o estado, escolher os legisladores, administradores e magistrados. No estado de direito democrático, liberdade consiste no real poder dos cidadãos de: (i) converter em ato suas potencialidades físicas, intelectuais e morais (ii) pensar, querer e agir sem subordinação às ideias, à vontade e às crenças de outrem (iii) escolher o que lhes parece necessário, útil e agradável, sem intervenção compulsória do governo ou de terceiros (iv) fiscalizar e controlar a autoridade pública (v) decidir diretamente mediante plebiscito, referendo ou iniciativa de lei, questão relevante para a sociedade e para o estado. Da liberdade política, aproveitam-se os estelionatários, os corruptos, para iludir o povo, encastelar-se no governo e, sem pudor algum, usufruir do erário, das negociatas e das mordomias, embriagando-se com os eflúvios magnéticos do poder. 

O liberalismo supõe (i) a liberdade anterior e superior à autoridade (ii) a igualdade perante a lei. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem, respeitados os limites que a lei determina. Essa doutrina está na raiz de um movimento revolucionário na França do século XVIII (1701-1800). O povo assumiu o governo depois de se insurgir contra o poder absoluto do governante e os privilégios da realeza e da nobreza. [Na luta: povo = burgueses + proprietários de terras + filósofos + trabalhadores urbanos + camponeses. No posterior e institucional domínio: povo = burguesia]. No século seguinte, com o advento da industrialização na Europa e na América, a liberdade econômica descambou para o individualismo possessivo; mostrou-se amoral, injusta, propiciando fortuna ao dono do capital e miséria ao operário. A igualdade perante a lei revelou-se insuficiente à massa popular. No livre direito de contratar, a parte frágil fica em desvantagem, o empregado fica à mercê do empregador, o consumidor fica inferiorizado ante o senhor dos preços. 

As ideias socialistas se robustecem diante da cruel realidade. Justiça social, igualdade material, salários dignos, limite às horas de trabalho, assistência social, acesso aos bens da civilização, foram as bandeiras erguidas pelo movimento de humanização apoiado pelo Papa Leão XIII (encíclica Rerum Novarum). O movimento socialista inspirado principalmente na obra de Carlos Marx, desemboca nas revoluções russa (1917), chinesa (1948), cubana (1959), portuguesa (1974), venezuelana (1999). A revolução mexicana teve nuance socialista ante as reivindicações dos campônios e dos trabalhadores urbanos (1910). 

O liberalismo, para sobreviver, abre espaço à massa popular, mas, sem abrir mão do sofisticado, incolor, inodoro e insidioso método de dominação e exploração mediante ficções ideológicas e imagens utópicas. 


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