sábado, 29 de fevereiro de 2020

GOVERNOS AUTOCRÁTICOS

NO MUNDO, autocracia é definida como forma de governo sem a participação popular, baseada na força e na vontade dos governantes perante os quais os governados só têm deveres e não direitos. Supõe pensamento único e homogêneo imposto ao povo. A autoridade encarcera a liberdade e os direitos humanos. Desde as primeiras civilizações até as modernas, prevaleceram os governos autocráticos de faraós, reis, assembleias, generais, papas, senhores feudais e ditadores. Na democracia ateniense que serviu de modelo à civilização ocidental, a maior parcela do povo não tinha acesso ao senado. Prevalecia a vontade da minoria privilegiada quanto aos assuntos de estado e aos direitos de propriedade. Afigura-se inapropriado falar-se em democracia “grega” quando, naquela época, havia estados gregos autocráticos. No Ocidente moderno, quer nos países capitalistas, quer nos países socialistas, inobstante o aumento da prática dos debates, das decisões coletivas e das eleições, no âmbito do estado e da sociedade, a democracia tem sido mais formal do que material, mais aparente do que real, pelo menos no que tange à participação direta do povo nos assuntos de estado e nos destinos da nação. Nos países da América Latina esse fato é marcante. Nesta região, o caudilhismo ainda é forte e gera ditaduras civis e militares precedidas de golpes de estado. O Brasil surfa nessas ondas. 
NA ALEMANHA, o magnifico edifício social e econômico construído em 7 anos por Hitler e pela alta burguesia alemã durante a autocracia nazista foi destruído pelo próprio Hitler e pelos generais em 3 anos. Depois de ter sido a maior potência estratégica e econômica do planeta (1935/1942), a Alemanha ficou em frangalhos em consequência da derrota na segunda guerra mundial. Sob a democracia social, o país se recuperou e hoje é uma potência econômica. No entanto, o nazismo volta a assombrar os europeus.     
NO BRASIL, a autocracia nazifascista foi marcante após (i) a revolução de 1930 e (ii) o golpe militar de 1964. A fase de chumbo do primeiro período durou 8 anos (1937/1945). O segundo período, somadas as fases de chumbo e de distensão, durou 21 anos (1964/1985). Cada período implantou a sua própria ordem desenhada em carta constitucional (1937 e 1967). Os dois períodos caracterizaram-se pela suspensão dos direitos humanos, pela censura da imprensa, pela prisão, tortura e morte de pessoas antipáticas ao governo. Discordar do governo tipificava ato impatriótico, subversão, crime contra o estado. As liberdades públicas foram consideradas: (i) fontes de desagregação e discórdia (ii) desestabilizadoras do governo e das instituições (iii) nefastas ao bem comum e à nação em geral. 
Nos dois períodos autocráticos houve progresso econômico, cuidados com a educação, a saúde e os esportes e zelo pela soberania nacional. No segundo período, o governo militar submeteu-se aos interesses dos EUA durante a guerra fria com a URSS, adotou o conceito de guerra intestina, perseguiu, prendeu, torturou e matou brasileiros considerados socialistas ou comunistas. As autoridades brasileiras continuam a prestar serviço ao governo estadunidense em assuntos estratégicos e no combate ao comércio ilícito de drogas.   
Atualmente, em diferente contexto, o presidente da república, submisso ao governo dos EUA, pretende restaurar a autocracia nazifascista. Governa em frontal oposição aos princípios fundamentais do estado democrático de direito (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, pluralismo político). Ao convocar o povo para reunião em praça pública a fim de atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, o presidente revela a intenção de obter apoio popular para instaurar um estado autocrático em substituição ao estado democrático instituído pela Constituição da República de 1988. 
O direito de reunião de essência democrática, constitucionalmente assegurado, está sendo usado para destruir a democracia e derrogar a Constituição. O presidente rompeu o solene compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, interferiu no livre exercício dos poderes legislativo e judiciário, afrontou o princípio constitucional da separação dos poderes. Além disto, há outras condutas indecorosas e graves, desde a posse no cargo até o presente momento, que autorizam a destituição do presidente mediante o devido processo parlamentar de impeachment. 
A extrema direita apoia esse presidente. Compõe-se de milhões de brasileiros favoráveis ao retorno da ditadura militar. Essa fatia do corpo eleitoral (30 milhões?) valoriza mais a segurança do que a liberdade e desconfia dos civis no governo. Da tríade positivista de Augusto Comte, amor por princípio, ordem por base e progresso por fim, a república brasileira esqueceu o princípio e valorizou a base e o fim. A liberdade na vida republicana brasileira tem seu pequeno espaço constantemente invadido pelo autoritarismo. O governo atual pretende eliminar esse espaço. Entende que a liberdade gera balbúrdia, confusão, desordem, situações prejudiciais à segurança e ao desenvolvimento da nação. Nesse contexto, o autoritarismo é necessário, segundo tal entendimento.
A diferença de pensamento entre indivíduos da direita e da esquerda é fato natural e cultural inarredável e compreensível. Entretanto, formular proposições originárias da falta de observação dos fatos, da observação defeituosa dos fatos, ou da intencional vontade de ignorá-los, tipifica erro censurável. Qualificar de democrático ato contrário ao funcionamento de órgão legislativo composto de representantes eleitos pelo povo configura erro proposital, significa zombar da inteligência alheia e querer justificar golpe de estado. A crítica racional, plausível, alicerçada em atos e fatos reais, é útil e desejável. Todavia, o ataque irracional, irascível, gerado pela paixão, pelo fanatismo, contra as instituições (como a suprema corte) com o visível propósito de extingui-las ou desmoraliza-las, tipifica subversão da ordem constitucional e merece o repúdio dos que zelam pela democracia e pelo respeito à Constituição da República.       

Nenhum comentário: