sábado, 8 de fevereiro de 2020

PRESCRIÇÃO & IMPUNIDADE

Na sessão plenária do dia 05/02/2020, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar habeas corpus (HC) impetrado pela Defensoria Pública da União, debateu o sentido e o alcance das regras sobre a interrupção do curso da prescrição. Depois dos votos de 9 ministros, o julgamento foi suspenso ante a ausência do decano. Cada ministro poderá mudar o seu voto. O ministro Lewandowski, ao votar, lembrou que a ministra Carmen Lúcia mudara no plenário o voto que proferira na turma. Não há desdouro em mudar desde que de boa-fé, sem malícia, sem esperteza enganosa,  com maturidade e com honestidade. 
Prescrição significa, na esfera jurídica, meio legal de adquirir ou de perder direitos por simples decurso do tempo. Quando alguém, sem ter o domínio, está na posse mansa e pacífica de imóvel por certo tempo, adquire o direito de propriedade (usucapião). O estado perde o direito de punir quando a demora em apurar a responsabilidade penal do acusado extrapola o prazo legal. 
No HC, ao partirem de premissa falsa, os votos vencedores chegaram a conclusão falsa. A inércia (falta de ação) não é o único fato gerador da prescrição. A morosidade (lentidão ao agir) e a marcha intermitente (repouso e movimento alternados) são os fatos geradores mais frequentes. Inércia, morosidade e intermitência são causas remotas. A causa imediata e eficiente da prescrição é a falta de solução tempestiva. Há limite de tempo para se apurar a responsabilidade penal do investigado e do acusado. Ultrapassado esse limite, seja por inércia, seja por morosidade, incide a norma sancionadora que retira do estado o direito de punir o cidadão. Caracterizada a prescrição, o cidadão recupera a plenitude dos seus direitos. A partir daí, ele não pode mais ser investigado, acusado ou julgado pelo mesmo fato delituoso. A prescrição é objetiva. A culpa do servidor público pela inércia ou pela morosidade e os atos legais da defesa não são justificativas válidas para afastá-la.  
Termo inicial da prescrição é o dia em que o crime se consumou. Interrompido o curso da prescrição, o prazo começa a correr por inteiro novamente. A sentença condenatória e o acórdão condenatório, ambos recorríveis, estão entre as causas interruptivas da prescrição. (CP 117, IV). Antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, a prescrição regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime. Depois do trânsito em julgado, a prescrição regula-se pela pena aplicada. Os prazos não variam. (CP 109/112).  
Sentença, na linguagem jurídica, significa o ato do juiz ou do tribunal que coloca fim ao processo resolvendo, ou não, o mérito da demanda. Destarte, o ato final do juízo singular (vara) e o ato final do juízo colegiado (tribunal) são sentenças. A proferida por tribunal denomina-se “acórdão” como sinal distintivo da proferida por juiz singular. [Palavra inicial da decisão colegiada: “acordam”]. O primeiro grau de jurisdição nem sempre ocorre perante o juízo singular. Para determinadas ações judiciais em que os réus têm privilégio de foro, a jurisdição de primeiro grau compete ao tribunal (ações originárias). O acórdão condenatório proferido em ação penal originária interrompe o curso da prescrição. Nas outras ações em que a jurisdição do tribunal é de segundo grau, tratando-se, pois, de competência recursal, o acórdão confirma ou reforma a sentença do primeiro grau. O acordão apenas mantém os efeitos da sentença condenatória quando a confirma. Nesta hipótese, não há solução de continuidade. O curso da prescrição continua sem interrupção. Já o acórdão que  condena o réu ao reformar sentença absolutória, interrompe o curso da prescrição. Nesta hipótese, há solução de continuidade. 
Na atmosfera política da época, o legislador mirou a árvore e não viu a floresta (1930/1940). Tratou das ações penais iniciadas perante os juízes singulares e omitiu as ações penais iniciadas perante os tribunais. Provavelmente, considerou acórdão implícito no conceito amplo de sentença. A lacuna foi preenchida por lei posterior. Fato semelhante ocorreu com o legislador constituinte. As assembleias anteriores vedavam só tribunal de exceção. A assembleia de 1987/1988 preencheu a lacuna ao vedar também juízo de exceção. Os juízes das ações oriundas de operações do tipo lava-jato constituem juízo de exceção quando inventam regras, contornam ou contrariam dispositivos constitucionais e legais, burlam o sistema processual vigente no país. O legislador ordinário também preencheu lacuna ao criar recentemente o juízo das garantias
A lentidão nos trâmites do processo vem ordinariamente justificada como sendo consequência (i) da preocupação com a lisura das investigações, com o exame das provas e com a justiça do julgamento, o que exige tempo de maturação (ii) das falhas estruturais do poder judiciário (iii) do volume de processos (iv) da insuficiência de pessoal, de material e de verbas. Paralelas a esses fatores atuam duas forças de sinais contrários: a morosidade (ação lenta) e a celeridade (ação rápida) ambas intencionais e seletivas. As duas forças são impulsionadas pelos interesses das partes e pelas artimanhas dos advogados e dos agentes do estado (delegados, procuradores, magistrados) ora favoráveis ao retardo, ora favoráveis ao avanço dos procedimentos.
Nas relações jurídicas, o fator tempo é relevante. A inércia, a intermitência, a lentidão, são danosas. O periculum in mora reclama medidas cautelares. A lei estabelece prazos curtos para a conclusão de inquéritos e processos criminais quando o réu está preso. A violação desses prazos enseja a devolução da liberdade ao réu. Também não se justifica o processo demorar uma eternidade porque o réu está solto. A prescrição, causa de extinção da punibilidade e do processo, equivale a castigar o estado por suas mazelas. Esse instituto jurídico tanto protege cidadãos contra iniquidades, como beneficia bandidos do colarinho branco (políticos, empresários, banqueiros, bispos evangélicos, donos de aeronaves, doleiros) cujos inquéritos e processos (quando instaurados) arrastam-se por anos a fio até a prescrição se consumar. 
O legislador e o juiz deparam-se, de um lado, com o problema da impunidade e, de outro, com a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos. A impunidade em tela é a dos tubarões, porque os bagres são rigorosamente punidos, principalmente os escuros. A Holanda e a Suécia fecharam vários presídios por falta de presos. No Brasil, os presídios estão lotados (fato que derruba o argumento da impunidade geral). O governo brasileiro devia negociar com o holandês e com o sueco, o traslado daqueles presídios para o nosso território. O problema da superlotação estaria resolvido e aqueles países teriam contribuído para humanizar a execução penal.

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