sábado, 9 de março de 2019

APLICAÇÃO DO DIREITO

Em reunião das nossas famílias em minha casa, na cidade de Pato Branco/PR, por volta de 1972, onde e quando eu exercia a judicatura como juiz substituto, o promotor de justiça da comarca revelou que havia se surpreendido ao constatar que muitos assuntos da comunidade não passavam pelo Fórum. Até então, ele imaginava que tudo o que ocorria na sociedade (local e nacional) desembocava no Fórum. Aquela revelação me fez perceber que, ao mergulhar de modo profundo e exclusivo no direito, o jurista reduz o seu horizonte, sem notar que o mundo é bem maior do que o Fórum. As pessoas naturais, as pessoas jurídicas, as instituições, tratam dos seus negócios e resolvem seus problemas diretamente sem intervenção das autoridades estatais. Na hipótese de controvérsia não resolvida diretamente, os interessados valem-se de árbitros e mediadores. As grandes corporações, por exemplo, procedem desse modo para evitar as incertezas e as delongas de um processo judicial. Os casos levados à Justiça (delegacia + promotoria + juiz) são os que restaram sem solução amigável. No entanto, o caso pode ser resolvido por acordo mesmo no curso do processo judicial. Em não havendo consenso, o processo segue os seus trâmites legais.
A conduta humana é racional (sob o domínio da razão) e irracional (sob o domínio da paixão). As normas convencionais, religiosas, morais e jurídicas têm por fim discipliná-la. Essa normatividade adquire concretude na dinâmica social. Ao adquirir medicamento na farmácia o comprador celebra contrato de compra e venda. O mesmo acontece em outros estabelecimentos com as mais variadas mercadorias. O operário celebra contrato de trabalho com o empregador. Ao viajar de trem, de ônibus ou de avião, o passageiro celebra contrato de transporte com a empresa de viação. Cuida-se do modo normal e costumeiro de se viver em sociedade. A autoridade estatal intervém quando há conflito. Quem pratica ato ilícito fica sujeito às penas da lei. A polícia e o promotor público intervêm para, em nome da lei, manter a ordem.  O juiz intervém a pedido dos interessados no devido processo jurídico para resolver o conflito e pacificar os espíritos.
O jurista, professor e filósofo espanhol Luis Recaséns Siches, no seu livro Experiencia Juridica Naturaleza de la Cosa y Logica Rasonable (México, Fondo de Cultura Económica, 1971) censura o emprego da lógica formal, especialmente do silogismo, na prática do direito. Opõe-se à concepção do direito como um sistema dedutivo fechado. Entende que a lógica formal destina-se à busca da verdade, própria das ciências exatas e das ciências naturais; que o direito exige outra lógica, a do razoável, destinada – não à busca da verdade – e sim à realização da justiça, do bem comum e dos valores éticos vigentes na sociedade. Afirma ser a lógica do razoável mais adequada para tratar dos problemas humanos; que do silogismo não resulta justiça alguma; que a mal chamada “aplicação do direito” deve ser descartada por ser uma ideia errônea; que o direito positivo não é o conteúdo da Constituição, das leis e regulamentos, prefigurado, concluso e pronto para ser aplicado; que o sistema do direito é aberto; que falar em “aplicação do direito” é o mesmo que falar em “círculo quadrado”; que “aplicação” insere-se no processo de criação da ordem jurídica.
O professor espanhol alinha-se com o pensamento do belga Chaim Perelman (Tratado da Argumentação) e do alemão Theodor Viehweg (Tópica e Jurisprudência) enquanto censura de modo severo o pensamento do italiano Norberto Bobbio e, de modo brando, o pensamento do mexicano Eduardo Garcia Maynez (seu colega de cátedra na universidade do México).
Em que pese a autoridade desses tratadistas, cumpre lembrar que a forma silogística da sentença resulta do caráter científico da produção jurídica no campo processual. A lógica formal e a lógica material conformam e informam o trabalho científico. No processo judicial, o aspecto silogístico da sentença caracteriza-se pelas seguintes exigências: (i) relatório do que foi processado (ii) análise fundamentada das questões de fato e de direito (iii) decisão. As premissas do julgamento não se confundem com as premissas do silogismo puro (“Todo homem é racional; ora, Jesus é homem; logo, Jesus é racional”). As premissas do julgamento são razões do convencimento do juiz extraídas do conteúdo do processo, fundadas na prova, constituídas de juízos de fato e de juízos de valor, voltadas para o enquadramento jurídico do caso. O aspecto lógico da sentença não se altera mesmo quando o juiz inicia a sua argumentação indicando desde logo o seu convencimento. Exemplo: “A pretensão deduzida na petição inicial merece (ou não merece) acolhimento” ou “procede (ou não procede) a denúncia”. No dispositivo (parte final da sentença) ao concluir a argumentação, o juiz cita as normas constitucionais e legais aplicadas e dita as consequentes determinações. Se a conclusão não resultar logicamente das premissas do julgamento, a sentença será anulada.  
A forma silogística da sentença não tem apenas função lógica, pois funciona também como garantia de um julgamento correto (ainda quando injusto) e de respeito aos direitos e interesses dos litigantes (embora as partes não se conformem). A interpretação das normas jurídicas e a aplicação destas aos casos concretos são relevantes para os jurisdicionados individualmente e também para a eficácia da ordem jurídica na vida social. Entretanto, como se extrai da experiência forense, o excesso no trabalho interpretativo do juiz descamba para o arbítrio e o engodo. A interpretação judicial pode ser criadora e demolidora. Quando há suficiente clareza na letra da lei, o juiz deve encerrar aí o seu trabalho interpretativo. In claris non fit interpretatio. “Quando uma lei é clara não é lícito eludir a sua letra sob pretexto de penetrar seu espírito”. (François Gény). Se apesar da suficiente clareza do texto legal, o juiz continua o trabalho interpretativo para obter resultado mais amplo, ou mais reduzido, ou até oposto ao que está escrito, é sinal de que o julgamento está viciado pela parcialidade, esperteza enganosa, politicagem. Nessa hipótese, ao invés de aplicar o direito vigente no estado, o juiz: (i) cria para o caso sub judice o seu próprio direito segundo a sua caprichosa vontade (ii) fantasia a ordem jurídica com retórica purpurina (iii) contraria o princípio da segurança jurídica, essencial à ordem e à paz no seio da nação organizada como estado democrático de direito. Quando o significado e o sentido da norma forem obscuros, ou se aplicada no caso concreto, a norma produzir efeitos nefastos ao bem comum, ou à ordem pública, o juiz atenua a literalidade e a análise gramatical e se utiliza de outros métodos interpretativos aceitos pela moral e pelo direito a fim de chegar a resultados menos danosos. A interpretação judicial construtiva é tolerada quando compatível com os princípios estruturadores da ordem jurídica vigente. Terminado esse lavor intelectual e obtido o enquadramento jurídico adequado, o juiz prolata a sentença.               
À medida que analisa o conteúdo do processo, o juiz vai cimentando a sua convicção e acaba por chegar a uma conclusão antes mesmo de prolatar a sentença. Isto não significa que tal decisão seja precipitada. Significa, isto sim, que o conjunto probatório e a dialética travada no processo (teses de um lado, antíteses de outro) geraram o convencimento do juiz. Então, dentre as normas constitucionais e legais em vigor, o juiz escolhe aquelas que, no entendimento dele, citadas ou não pelas partes, encaixam-se na sua decisão e melhor atendem aos interesses em jogo e ao senso de justiça. Nesse mister – e sempre que sentir necessidade de encorpar os fundamentos da sua decisão – o juiz socorre-se dos precedentes judiciais (jurisprudência), das obras dos tratadistas mais qualificados (doutrina), dos usos e costumes em voga na sociedade e das cláusulas do contrato (quando houver) objeto da ação judicial. Para ajustar esse material à decisão ainda não formalizada, o juiz despende esforço hermenêutico dos fatos e das normas atinentes à demanda. Tal é a arte do direito.
A opinião pública pode impressionar, mas não é decisiva, salvo para juiz mais suscetível ao canto da sereia. Algumas vezes, quando ausente tal suscetibilidade, a sentença colide com a vontade da massa popular ou com a opinião manifestada pelos meios de comunicação social. 
Apesar de a expressão “aplicação do direito” ser considerada grave erro pelo mencionado jurista espanhol, o fato é que ela se refere à técnica jurídica, principalmente no que concerne aos órgãos jurisdicionais que aplicam princípios e normas do ordenamento jurídico aos casos debatidos no processo judicial. Portanto, não se trata do direito considerado abstrata e teoricamente, mas sim do direito posto (expressão preferida de Marco Aurélio, ministro do Supremo Tribunal Federal). Positivado na Constituição, na lei, no regulamento, esse direito prefigurado, concluso e pronto (linguagem do jurista espanhol) é aplicado pela autoridade estatal na solução de problemas públicos e privados. Cuida-se de um dos momentos da concretização do direito na vida social. Ao julgar os casos no âmbito da sua competência, o magistrado usa a sua independência, a sua inteligência, a sua estrutura moral, a sua experiência, a sua intuição, a sua sensibilidade, o seu conhecimento e a sua cultura. Durante o processo, o juiz segue os procedimentos legais, reflete sobre a tese do autor, a antítese do réu, a prova produzida e as circunstâncias do caso.
Não se há de esquecer que, no Brasil, o direito civil, penal, administrativo e processual tem suas fontes históricas no direito europeu ocidental (Itália, França, Alemanha, Portugal) e se filia à tradição romana e germânica. O direito consuetudinário e tópico (casuístico) da comunidade britânica de nações (Inglaterra, Canadá, Austrália, Nova Zelândia) não se ajusta ao sistema jurídico brasileiro. O Brasil, no período republicano da sua história, copiou da Constituição dos EUA a organização dos poderes, graças ao trabalho de Ruy Barbosa. O genial jurista brasileiro arrependeu-se de transpor para o Sul o exitoso modelo do Norte. Queixou-se do inesperado comportamento dos juízes do supremo tribunal. Esperava juízes corajosos, independentes, imparciais. No afã de trazer para o seu país o modelo que tanto admirava, Ruy não levou em conta a mediocridade e a malandragem dos seus compatriotas, o jeitinho esperto, a frouxidão moral e o caráter mal formado da grande parcela do povo brasileiro na qual os juízes e ministros são recrutados (ricos, remediados, brancos, graduados, pós-graduados). O notável jurista baiano imaginou que todo brasileiro era igual a ele e quem fosse exercer a judicatura na suprema corte seria imparcial, independente, corajoso, culto e virtuoso. Enganou-se. Admitiu o seu engano antes de morrer (1923).

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