sábado, 12 de agosto de 2017

OPINIÃO ILEGAL

O Tribunal Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre/RS, julgará os recursos do ministério público e do réu, interpostos da sentença proferida pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o réu Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da república brasileira. O juiz e a sentença foram alvos de severas críticas no país e no estrangeiro feitas por juristas, jornalistas, políticos, intelectuais de diversas áreas. O presidente daquele tribunal defendeu o juiz e a sentença quando entrevistado por jornalista do Estado de São Paulo no dia 31/07/2017 (edição de 06/08/2017).
Talvez, ante as veementes críticas, o desembargador presidente sentiu-se no dever de entrar na arena. Entretanto, não lhe assentam bem as armas e as sumárias vestes de gladiador. Ao magistrado mais convém a toga. Talvez, a humana vaidade contribuiu para o desembargador entrar em cena, atraído pelas cores do palco e luz dos holofotes. Talvez, ele tenha agido na esperança de ocupar uma cadeira no supremo tribunal onde pontificou o seu avô. Talvez, por amor à história do seu rincão, ele queira evitar que um estadista nordestino ensombre a imagem de um estadista gaúcho. Reconheça-se com franqueza, honestidade e justiça: Vargas, rico estancieiro gaúcho, e Silva, pobre metalúrgico nordestino, foram os dois maiores estadistas do período republicano da história do Brasil.
Para explicar a atitude do desembargador haverá mais outro talvez? Relações encortinadas? Quem sabe? Em síntese, ele diz que a sentença é tecnicamente irrepreensível e entrará para a história do Brasil; que o juiz examinou de modo irretocável a prova dos autos; que indício também é prova. Ele compara a sentença do caso Lula com a do caso Herzog e indica o ponto comum: as duas não se preocuparam com erudição e sim com a prova. Disse mais, que se integrasse a 8ª Turma e a sentença fosse justa, ele a confirmaria sem titubear, pois dela gostou.
Gosto não se discute. Há outras pessoas que também gostaram (operadores do direito, donos de jornais e de emissoras de televisão, empresários, banqueiros, políticos). Acontece que a sentença é injusta como atestam abalizadas críticas publicadas nos diversos veículos de comunicação social. Apesar disto, o desembargador manda um recado subliminar aos seus colegas da 8ª Turma: confirmem a sentença condenatória. Para a sua influência dentro e fora do tribunal concorre a presidência por ele ocupada. Na citada entrevista há um quê de superioridade, como se o desembargador presidente fosse jurista melhor capacitado do que os seus colegas.
Comparar a sentença do juiz curitibano com a proferida pelo juiz paulista é sacrilégio. No caso de São Paulo, Herzog foi vítima de homicídio quando estava preso. No caso de Curitiba, a questão é patrimonial, sem ligação com assassinato. O raciocínio do juiz paulista foi correto enquanto o do curitibano foi o oposto (indução insuficiente, dedução com premissas falaciosas, nexo de causalidade inexistente). O juiz paulista firmou a sua convicção em prova idônea enquanto o curitibano firmou a sua em “prova” inidônea (matéria jornalística, delação, indícios). A prova, inclusive a pericial, deve ser idônea e convincente. Na crônica forense há episódios, como o de Wladimir Herzog, nos quais o laudo pericial confirma a versão policial de suicídio do prisioneiro. No entanto... pois, é.  
A comparação feita pelo desembargador para prestigiar o seu pupilo assemelha-se à que se faz no futebol para valorizar o passe do jogador: eleva-se artificiosamente o jogador ao nível de Pelé.
Quando menciona falta de erudição, o desembargador implicitamente desculpa a linguagem sofrível e o rombudo intelecto do juiz curitibano. Dos magistrados não se exige erudição e sim cultura geral e jurídica, honestidade, imparcialidade, independência, serenidade, assiduidade, pontualidade, urbanidade, decoro, sensatez, clareza, objetividade, respeito à Constituição e às leis.
Ao afirmar que a sentença é tecnicamente irrepreensível, o desembargador dá o seu aval de presidente a gritantes falhas técnicas tais como: prolixidade (falta de síntese), autodefesa do juiz no corpo da sentença (como se fosse réu), complexidade artificialmente criada (embromação, lawfare), indício equiparado a prova. Do seu pronunciamento subentende-se que os recorrentes e os desembargadores devem aceitar as inconsistências da sentença, posto ser ela irrepreensível (sem mácula, perfeita). Tal sugestão presidencial implica a intenção de limitar o direito postulatório do acusador e do defensor e controlar o poder jurisdicional da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal.
O desembargador presidente afirma que o exame da prova foi minucioso e irretocável. Isto significa que os postulantes e os desembargadores da turma recursal devem se abster de retocar o aludido exame, ou seja, devem se limitar à argumentação sem examinar a prova dos autos. Todavia, nos termos da lei processual, as apelações do acusador e do defensor têm efeito devolutivo. Portanto, os desembargadores têm o dever de examinar os fatos e as provas e não só as razões de direito. Nota-se, por exemplo, que nas suas 218 páginas, a sentença não especifica a prova do ato de ofício que o réu teria praticado e que explicaria a propina e tipificaria o crime de corrupção passiva.
A tese de que indício é prova, ainda que amparada na autoridade de algum doutrinador, agride a semântica. Indício significa sinal, vestígio. A lei brasileira assim o define: circunstância conhecida e provada que tendo relação com o fato, autorize por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. (Código de Processo Penal – CPP, 239). Circunstância é particularidade que circunda o fato central. O indício provoca juízo de probabilidade, não é prova em si, mas algo circunstancial ao redor do fato típico, particularidade da investigação que complementa, agrava ou atenua, um ato ou fato supostamente repreensível. A validade jurídica do vestígio depende do exame pericial. (CPP, 158). O galão de gasolina encontrado no local (indício) sugere a probabilidade de o incêndio ter sido intencional; o exame pericial apontará a causa. As cinzas indicam que algo foi queimado (indício), mas o quê, como, quando, quem, qual finalidade, depende de prova específica e idônea. A certeza da existência do indício não se confunde com a certeza da existência do fato típico objeto da ação penal. A confusão, às vezes proposital, entre as duas certezas, pode mascarar a ausência de prova idônea do fato central (típico). 
No processo judicial, a prova oral é produzida em audiência na presença do juiz, sob o crivo do contraditório (quando os depoentes sujeitam-se às perguntas do juiz, do agente do ministério público e do advogado). Compreende: confissão, depoimentos (das partes, de testemunhas e informantes) e os esclarecimentos prestados pelos peritos. Depois de o juiz reduzi-los a termo (escrito ou gravado) os elementos orais adquirem natureza documental. Depoimentos extrajudiciais postos por escrito não valem como prova oral e sim como prova documental. Tais depoimentos escritos podem constar de instrumento particular assinado pelos depoentes ou de instrumento público lavrado no cartório de títulos e documentos. O depoimento extrajudicial converter-se-á em prova oral se o depoente comparecer perante o juiz e ratificá-lo ou retificá-lo no devido processo legal. Caso contrário, permanecerá como prova documental cuja idoneidade e cujo peso o juiz avaliará.
No processo judicial brasileiro não há hierarquia entre as provas. Todas têm igual valor (oral = documental = pericial) embora possam ter pesos distintos no plano dos fatos. No que tange ao bem imóvel, por exemplo, a escritura pública é a prova por excelência da propriedade e pesa mais do que a prova oral; já no que tange à posse, a prova oral pesa muito. Matéria jornalística, delação premiada, papéis desvinculados da causa e outros indícios, não funcionam como prova do ilícito penal e sim como informação para se obter a prova. Daí, o frouxo alicerce da sentença que condenou o ex-presidente e entrou para a história do Brasil como herética prestação da tutela jurisdicional. Tal sentença ficará registrada na memória da nação brasileira como vergonhoso capítulo da indecorosa e ilícita influência da política partidária e ideológica no processo judicial.     
O desembargador presidente emitiu opinião sobre um processo ainda em andamento no qual ele não funciona como relator, revisor ou vogal. A sua conduta contraria a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/1979, art. 36, III): “É vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem (...) ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou exercício do magistério”. No mesmo diapasão, o Código de Ética da Magistratura Nacional (art. 4º + 12, II) promulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e publicado no Diário da Justiça de 18/09/2008. A manifestação do desembargador não se enquadra nas ressalvas da lei e do código. Da sua atitude emanam: de um lado, antipatia pela filiação partidária e pelo status político do réu; de outro, simpatia (quiçá hereditária) pela direita do espectro político. A liberdade de expressão não isenta de responsabilidade quem ultrapassa limites éticos e jurídicos.    
Quem irá promover perante o CNJ a ação administrativa disciplinar contra o desembargador pela infração cometida? Advogados relutam em processar magistrados porque: (i) acreditam na impunidade decorrente da solidariedade corporativa existente no seio da classe; (ii) receiam represálias nas suas atividades forenses e o estigma de inimigos da magistratura. Há notícia de que um deputado federal representou contra o desembargador.    

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