Os costumes, crenças, aspirações,
sentimentos, idéias, vigentes em uma sociedade conformam a existência
religiosa, moral e jurídica dos seus membros. Ao se falar no espírito do povo, no espírito da lei, no espírito científico, no
espírito religioso, está se reconhecendo um substrato mental e emocional,
uma dimensão espiritual da cultura humana à qual temos acesso por intermédio da
nossa inteligência e sensibilidade. Desde a infância somos educados para
penetrar nesse mundo e trabalhar com o material nele existente (aritmética, álgebra,
estética, regras do decoro, explicações científicas, opiniões filosóficas,
doutrinas religiosas).
Além desse mundo imaterial criado
pela mente humana, acredita-se na existência de outro mundo também imaterial
organizado segundo leis divinas e povoado por seres desprovidos de corpo
físico. Essa crença é o alicerce do espiritualismo que está na base das
religiões. Aniquilada essa crença que inclui a continuidade da vida após a
morte do corpo físico, religiões desmoronariam e igrejas perderiam poder. Secaria
a fonte de renda dos mercadores da fé. Cada líder religioso constrói a imagem do
mundo espiritual como lhe parece e a transmite ao público. A necessidade humana
do pão espiritual torna viáveis a mitologia e a religiosidade. Desse pão, a
ilusão é o fermento. Entre os padeiros estão os estelionatários da fé. Sociólogos
consideram a religião fenômeno social com base nessa necessidade sentida pelo
grupo humano desde remota antiguidade quando ainda não havia templo nem
teologia (Émile Durkheim. Las Formas
Elementales de la Vida Religiosa. Madri. Akal, 2007, p. 8).
O medo, a ignorância, a insegurança,
a incerteza, o sentimento de impotência diante das forças telúricas, o desejo
de se proteger da doença e do perigo, as inquietações da vida enfim, levam os
humanos a crer em entidades poderosas exteriores ao mundo físico. Essa base
psicológica leva à solidariedade e à comunhão. Rituais e fórmulas são
engendrados para agradar à divindade, aplacar a fúria da natureza, obter
proteção, cura dos males, êxito nos empreendimentos e prosperidade. A religião
do antigo Egito tinha por base a crença na imortalidade da alma e na vida no
além. O paganismo grego e romano prescindia desse tipo de preocupação embora
houvesse espírito religioso (deuses com atuação histórica, templos, devoção, cultos
domésticos). O judaísmo, o cristianismo e o islamismo colocam fé e esperança na
salvação da alma. Segundo a Bíblia hebraica, os humanos são pecadores. A igreja
cristã assombra os fiéis com o pecado: poucos ganham o Céu, cuja porta é
estreita; a maioria arde nas labaredas do Inferno. Essa doutrina contradiz a tese
de que Jesus veio para salvar a humanidade e tirar os pecados do mundo. De
acordo com o próprio Jesus, a maioria dos humanos já está condenada; só a
minoria que atravessa a porta estreita se salvará. Durante sua passagem pela
Terra coube a Jesus criar o embrião dessa pequena comunidade de santos.
Religião e mito são aparentados. O
humano cria o mito: narrativa, deuses e heróis. Os membros do clã, da tribo ou
da nação compartilham do mito. A tradição conserva-o. Segundo Joseph Campbell,
o mito é uma pista para as potencialidades espirituais da vida humana. Ao invés
de um sentido para a vida, busca-se uma experiência de estar vivo de modo que
essa experiência no plano puramente físico tenha ressonância no interior do ser
humano. Essa ressonância provoca o enlevo de estar vivo. O mito ajuda a colocar
a mente em contacto com a experiência de estar vivo (O Poder do Mito. São Paulo, Associação Palas Athena, 1990, p. 5/6).
A busca por essa experiência não
exclui a busca pelo sentido da vida. Ainda que a vida não tenha sentido algum e
a salvação da alma seja uma quimera ou um pretexto, o fato é que fiéis do
judaísmo, do cristianismo e do islamismo procuram tal sentido e nessa procura
podem perceber o enlevo de estar vivo. O terreno da espiritualidade é
metafísico e nele se caminha com a intuição; prepondera a crença; o raciocínio
é coadjuvante. Diz Huberto Rohden: entre
o entendimento intelectual do homem profano e o compreender espiritual do
iniciado medeia um grande sofrimento. Ninguém chega a Deus só pela força do
pensamento (“O Triunfo da Vida Sobre a Morte”. São Paulo, Martin Claret,
1991, p. 17).
Em se tratando de uma dimensão
cósmica imaterial, o mundo espiritual se constitui no habitat dos seres
imateriais inteligentes que ocuparam corpos físicos nos rincões do universo. No
mundo espiritual será impossível uma torre de babel, pois os seres imateriais
não necessitam do aparelho da fala próprio do organismo físico. Idiomas são
dispensáveis. A personalidade anímica não está sujeita aos limites da matéria.
Os seres encarnados na Terra usam diferentes idiomas para expressar a mesma
idéia (céu, cielo, sky). No mundo espiritual há transparência, a expressão das
idéias é direta e imediata e o meio de circulação é vibratório.
Em decorrência da sua arquitetura
mental, os humanos pensam o mundo espiritual em termos de espaço e tempo. O
brocardo místico assim como encima é
embaixo exemplifica essa transposição. Vem de Platão essa imagem espacial e
hierárquica do mundo material como sombra do mundo espiritual. Místicos
orientais afirmam a necessidade de esvaziar a mente para acessar ao mundo
espiritual. Para eles, aquelas categorias são inoperantes no mundo espiritual. A
estrutura lógica do pensamento humano coloca ordem nas idéias, mas o raciocínio
dificulta a harmonização no plano espiritual. A mente vazia é a senda para o êxtase
espiritual.
A radical separação entre os mundos
material e espiritual pode ser enganosa. Espírito e matéria formam unidade
cósmica em faixas vibratórias distintas. A célula animal serve de exemplo. Além
da matéria (membrana plasmática, citoplasma, cromossomos, ribossomos,
mitocôndrias) a célula está provida de energia e de inteligência para realizar
sua função, ou seja, provida de substrato espiritual.
Inferno e purgatório não são lugares
e sim condições terrenas criadas pela morbidez humana e materializadas pela
conduta dos crentes. Na avançada concepção de Santo Agostinho, o paraíso era um
lugar de paz e alegrias harmoniosas onde Adão e Eva se relacionavam sexualmente
com prazer e sem pecado, sob o beneplácito divino. Esse lugar jamais existiu.
Paraíso é sonho esperançoso. O primeiro casal é concepção infantil da mente
primitiva. No mundo material atua a lei do karma nos dois níveis: individual e
coletivo. Plantado o bem, colhe-se o bem; plantado o mal, colhe-se o mal.
Cogita-se do perdão. Recebe-lo não significa neutralizar o karma. Pedir perdão com
arrependimento gera efeito compensador. Conceder perdão com sinceridade gera
crédito. Alguns perdoam porque se julgam divinos; outros perdoam porque se
julgam civilizados e bondosos. A natureza não perdoa. A rigidez das suas leis
mantém o universo estável apesar do caos aparente. Flexíveis porque ditadas por
conveniência, as leis humanas geram instabilidade apesar da ordem aparente.
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