1951. Alto da Rua Itupava,
periferia de Curitiba, onde as casas eram de madeira e havia chácaras de
imigrantes e descendentes. Plantavam verduras, legumes, pés de laranja, pêra,
jabuticaba; criavam gado leiteiro, porcos, galinhas. Havia cavalos atrelados a
carroças de rodas de madeira com aros de ferro, sem molejo, tábua servindo de
banco. Nós, minoria, de baixa estatura, pele morena, cabelos e olhos escuros,
contrastávamos com aquela gente alta, pele clara, cabelos louros ou castanhos
claros, olhos azuis ou verdes. Olhávamo-nos com mútua curiosidade. Ao falar,
eles erravam na concordância e na pronúncia. No alvorecer do dia e da
adolescência eu saía com a minha cetra para caçar passarinhos. No bornal, a
munição: pequenas pelotas de barro feitas por mim e secadas ao sol. No
regresso, eu depenava os dois passarinhos que caçara e minha mãe os temperava e
fritava, mais para nutrir o meu orgulho de caçador do que para alimentar o
corpo. O diminuto volume da carne não mexia o ponteiro da mais sensível
balança. Pesava mais a satisfação moral de comer a caça.
2013. Campos e morros de Penedo,
distrito de Itatiaia/RJ. Ao raiar do dia os passarinhos começam a cantar aqui
no quintal de casa e nas cercanias. Suspendo a música da meditação. Escuto-os.
Entôo sons vocálicos, cada qual no tom adequado para acompanhá-los. Penso: provavelmente, os místicos orientais se inspiraram no canto dos pássaros quando inventaram
os mantras. O meu diabinho interior questiona: por que os passarinhos cantam? Podiam apenas voar, beber, comer e
reproduzir. Respondo: é da natureza
deles; cantam de alegria. O diabinho pondera: mas o canto pode ser de tristeza. Os poetas cantam as desilusões e as
experiências que os fizeram sofrer. Respondo: sim, mas os poetas são homens e não passarinhos. O diabinho opina
(aliás, era essa a sua intenção desde o início): da minha parte, acho que os passarinhos cantam o hino à vida. O canto
os fortalece e os identifica; cada espécie, o seu gorjeio. Aborrecido por
ver minha verdade questionada e minha vaidade ferida não lhe dei resposta.
Liguei o aparelho de som. Música suave. Voltei a meditar.
As andorinhas costumam enfileirar-se nos quatro fios
da rede elétrica que passa em frente e ao lado da minha casa. Por um longo
tempo ali ficam quietas ou a bicar embaixo das asas; às vezes, uma ou outra
muda de posição. Há ocasiões em que não passam de uma dezena, param pouco e
logo vão embora. Hoje contei mais de 100. Uma festa! Veio um pardal e se
empoleirou no topo do poste com pose de dono do pedaço. Ouço um canto alto,
forte e melodioso. Não é do pardal, nem da andorinha. Localizo o cantor: um
passarinho, inho, inho, do tamanho do mindinho. Fico admirado: como este
pequerrucho pode cantar desse jeito alto e vigoroso? Assemelha-se à espécie de
passarinho que no Paraná, ainda crianças, nós chamávamos de corruíra. Ele parece gostar da
audiência. Faz trejeitos, olha-me de soslaio, finge que não me vê estufa o
peito e capricha no agudo. Aceito o desafio. Finjo também que não o vejo, fico
no pátio e não arredo o pé enquanto ele não decola. O bem-te-vi também canta alto e forte, mas é um gigante comparado com
o tamanho deste passarinho. Quando um canta outros respondem e a cantoria
parece orquestrada por maestro. Ouvem-se cantos vindos de mais distante, tanto
das corruíras (vou chamá-los assim)
como dos bem-te-vis, sabiás, pintassilgos e outras espécies de passarinho. Cria-se autêntica e
natural sinfonia.
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