quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

DIREITO

Problemas internos da magistratura - II.

Na sessão do dia 16/12/2010, o Supremo Tribunal Federal julgou mandado de segurança interposto de decisão do Conselho Nacional de Justiça que anulara um decreto judiciário do Estado do Paraná. Esse decreto efetivara o impetrante como titular de cartório extrajudicial. A declaração de nulidade deveu-se à falta de aprovação do impetrante em concurso público de provas e títulos para ingresso na atividade notarial e de registro (CF 236, §3º). O impetrante apóia a pretensão de cassar a decisão do CNJ no princípio da segurança jurídica e na regra da decadência qüinqüenal administrativa. Alega estável situação jurídica de 15 anos desde a expedição do ato que o efetivou no cargo; diz que a administração pública se manteve inerte; transcorreu “in albis” o qüinqüênio decadencial; a administração pública decaiu do direito de desfazer o ato.

Talvez, em homenagem ao advogado do impetrante, ex-ministro do Supremo Tribunal, os ministros não insistiram na questão preliminar: ausência dos requisitos necessários à concessão do mandado de segurança (CF 5º, LXIX). Deixaram de examinar a existência ou inexistência de: (i) direito líquido e certo a ser amparado pela via do mandado de segurança; (ii) de ilegalidade ou abuso de poder do CNJ ao apreciar a validade do decreto.

Pelo exposto na sessão de julgamento, ao direito faltavam liquidez e certeza em face da colisão com norma da Constituição Federal. A própria existência do direito estava em jogo. Nos termos da Constituição, compete ao CNJ apreciar a legalidade dos atos administrativos praticados por órgãos do Poder Judiciário, desconstituí-los, ou revê-los (CF 103-B, §4º, II). O decreto judiciário expedido pelo tribunal do Paraná enquadra-se na categoria dos atos administrativos. Ao apreciar a validade do decreto e concluir pela nulidade, o CNJ não só exerceu a sua competência como também obedeceu ao devido processo legal, como se extrai dos pronunciamentos feitos na sessão. Não se vislumbra, pois, ilegalidade ou abuso de poder na decisão do CNJ, nem liquidez e certeza do direito invocado. A via escolhida para atacar o ato do CNJ foi inadequada. Por sua complexidade, a questão de direito devia ser resolvida pelas vias ordinárias.

As alegações do impetrante foram acolhidas pelos dois ministros mais antigos e pelo presidente do STF; os demais ministros denegaram o mandado. Tanto os votos vencedores como os vencidos se arrimaram na doutrina e em precedentes do tribunal. A maioria entendeu que o decreto judiciário violou a Constituição. A ineficácia do decreto é conseqüência inarredável da nulidade. A vaga no cartório extrajudicial torna a se abrir e deverá ser preenchida mediante concurso de provas e títulos.

O tribunal de justiça do Paraná, ao fazer tabula rasa do dispositivo constitucional que exigia concurso público, contrariou os princípios da moralidade e da impessoalidade (CF 37). O impetrante não pode se beneficiar da burla a preceito constitucional. Máxima do direito: ninguém deve tirar proveito da ilicitude a que deu causa (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). O decreto judiciário privilegiou uma pessoa em detrimento de outras pessoas que poderiam candidatar-se ao cargo. A política do fato consumado não sensibilizou a maioria dos ministros. O STF não homologou o decreto viciado e não se impressionou com o tempo decorrido desde a sua expedição.

Quando o decreto foi expedido (1994) vigorava a norma constitucional que exigia concurso público. Portanto, nem o tribunal estadual, nem o beneficiário do decreto podem alegar ignorância. A administração pública pode rever os seus atos, porém, a revisão se processa no âmbito de cada poder, tendo em vista o princípio da separação dos poderes (CF 2º). Destarte, o Executivo paranaense não pode rever o ato administrativo praticado pelo Judiciário paranaense, até porque a autonomia administrativa e financeira do Judiciário é regra constitucional (CF 99). Se discordar do decreto judiciário, o Executivo poderá pleitear judicialmente a anulação ou a declaração de nulidade. Nesta hipótese, o prazo prescricional será de 10 anos, previsto no código civil (art.205) e não de 5 anos previsto na legislação específica (Decreto 20.910/1932, DL 4.597/1942, Lei 9.873/1999). O Executivo paranaense, todavia, preferiu a via administrativa para obter a desconstituição do decreto estadual.

O episódio causa estranheza. Os desembargadores não são catecúmenos e sim homens e mulheres batizados e crismados no templo de Themis. Decreto judiciário não surge do nada e sim como a culminância de um processo administrativo. Razoável presumir que as questões de fato e de direito foram nele expostas e apreciadas. O impetrante já ocupava o cargo como substituto, segundo noticiado na sessão de julgamento. Ele não estaria, pois, ingressando na atividade notarial e sim nela permanecendo, agora, como titular. Teria ocorrido ascensão interna corporis. A situação do servidor do cartório extrajudicial estava consolidada por ato jurídico anterior e pelo tempo de substituição. Provavelmente, esse fato levou o tribunal paranaense a afastar a incidência da norma constitucional e a expedir o decreto.

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