terça-feira, 14 de dezembro de 2010

DIREITO

Liberdade de imprensa.

O governo federal pretende ressuscitar a lei de imprensa. O setor privado de comunicação social arrepia-se e invoca a liberdade de manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, assegurada na Constituição. Em evento público desta semana (08/12/2010) para exposição dos resultados do PAC (programa de aceleração do crescimento) o presidente Luis Inácio zombou dos profissionais da imprensa ao dizer que não via ninguém (no Brasil) defender a liberdade de expressão em favor do fundador do site WikiLeaks (Julian Assange) que publicara documentos secretos e provocara escândalo mundial. Perseguido pelos EUA e preso na Inglaterra, o australiano aguarda extradição a pedido do governo da Suécia, país em que ele foi processado pela prática de crime sexual. A expressão corporal de Luis Inácio e o tom do seu discurso evidenciavam ironia ao externar apoio a Julian. O presidente incorporou a imagem de homem providencial a suprir omissão dos jornalistas brasileiros na defesa da liberdade de informação. No bojo da ironia, o recado: (i) quando a ameaça à liberdade de imprensa parte de governo de esquerda, os jornalistas se alvoroçam, fazem escarcéu e caras de nojo; (ii) quando a ameaça parte de governo de direita (principalmente de alguma potência) os jornalistas se mostram cordatos; as notícias são desfibradas, moderadas pelo chefe, ao gosto e segundo os interesses do proprietário da empresa jornalística.

O Partido Democrático Trabalhista – PDT questionou perante o Supremo Tribunal Federal – STF a constitucionalidade da lei 5.250/67, mediante argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 130/DF). O jornalismo nacional ingressou no processo por seu órgão representativo. Legislativo e Executivo apresentaram defesa. No julgamento (30/04/2009) o STF acolheu a pretensão deduzida na petição inicial e retirou a eficácia da lei de imprensa. A decisão afirma que essa lei não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Pesou no julgamento o fato de a lei estar embebida na mentalidade autoritária, incompatível com a mentalidade liberal que impregna a posterior Constituição.

Derrotado no tribunal, o governo pretende lançar nova lei sobre a matéria, atitude própria da vocação autocrática que o caracteriza desde os primórdios da república. O governo atual qualifica a imprensa de partido político que necessita de controle; diz que esse controle acontece em outros países (dos quais omite a identificação e o regime político); afirma que não se trata de censura prévia e sim de censura post factum (como se a Constituição houvesse distinguido entre os dois tipos de censura). O governo detesta freios; aspira liberdade ampla para si e liberdade restrita para os outros; irrita-se com a crítica desfavorável; vibra quando destinatário de elogios e aplausos; mostra-se insatisfeito com a vigente legislação; cogita elaborar lei específica para controlar matéria veiculada pelas emissoras de rádio e TV, revistas e jornais impressos.

A nova lei funcionará “ad terrorem”, como cabresto ou espada de Dámocles sobre a cabeça do jornalismo brasileiro, inobstante o STF, na citada ADPF/130, haver declarado que basta a vigente legislação para inibir abusos praticados através dos meios de comunicação social. A fim de coibir abuso, o governo pretende inibir o uso da liberdade de manifestação do pensamento e de acesso à informação, apesar de a Constituição vedar censura de natureza política, ideológica e artística. Ao legislador ordinário compete apenas regular as diversões públicas e a propaganda comercial de produtos nocivos, bem como, garantir ao indivíduo e à família a possibilidade de se defenderem de programas contrários às diretrizes traçadas na Constituição. Reforçando tais preceitos, a Constituição estabelece limite específico ao legislador, proibindo-o de votar lei que cause embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social (art. 220, §1º).

Para ressuscitar a lei de imprensa com nova roupagem, o governo estriba-se no relativismo dos valores éticos e jurídicos. Esse relativismo, ao sair da teoria e adentrar a experiência, solapa os alicerces da sociedade civil e ampara as ações e omissões liberticidas. À sorrelfa, os inimigos da liberdade alteram o modelo traçado na Constituição; vilipendiam a liberdade que o sistema constitucional lhes concede; bradam em todas as direções: “não há direitos absolutos”. Com esse brado, a malta engabela a nação, desbasta o caminho que conduz ao aniquilamento dos direitos humanos, coloca os seus propósitos e a sua vontade acima dos princípios constitucionais.

A lógica bivalente do ser, a condicional lógica do dever-ser e a dialética do razoável, são instrumentos intelectuais utilizados na busca de solução para os problemas jurídicos. Na prática social, econômica e política, base empírica das normas de direito, equacionam-se os valores que se mostram absolutos em nível teórico. Liberdade e autoridade são valores políticos absolutos no plano conceitual, mas encontram limites ao se efetivarem no plano histórico. Quando aplicados às relações humanas concretas, o absolutismo da liberdade conduz à anarquia (extremo em que se localiza o direito absoluto dos governados) e o absolutismo da autoridade conduz à tirania (extremo em que se localiza o direito absoluto do governante).

No Estado Democrático há regras de organização da liberdade e da autoridade ditadas pelo legislador constituinte. Governados e governantes devem obediência a essas regras. Visando à realização do bem comum e da felicidade geral no evolver da nação, o legislador constituinte classificou de fundamentais algumas liberdades, declarou-as invioláveis e as encerrou em cláusula pétrea no texto constitucional. Circunstâncias excepcionais previstas expressamente na Constituição (como o estado de sítio) autorizam restrição ao exercício dessas liberdades. A história testemunha abusos dos agentes públicos na execução das medidas restritivas. Durante o período de exceção, as liberdades se mantêm no ordenamento jurídico, embora com eficácia reduzida. A exceção confirma a regra: intangibilidade dos direitos fundamentais. Em face da relevância dos bens e interesses nacionais a serem protegidos, o legislador constituinte atribuiu à autoridade pública prerrogativas enunciadas no texto constitucional. Imunidades dos parlamentares, chefes de governo e magistrados atendem a esse desiderato. Todavia, a ordem jurídica republicana e democrática construída pelo legislador constituinte brasileiro não tolera abuso no exercício das prerrogativas.

Liberdade e autoridade convivem e se limitam reciprocamente na Constituição. No plano conceitual, se extremam. No plano empírico, se ajustam. No caso de inerme e concreta disputa de liberdades entre membros da sociedade civil, prevalecerá a liberdade que se mostrar mais razoável e adequada à situação, segundo o senso de proporção e de justiça de quem funcionar como árbitro ou juiz. A idéia de proporção advém do senso estético e se expressa no cálculo. A idéia de justiça provém do senso ético e se expressa na conduta. Senso estético e senso ético integram a natureza humana. No conflito entre a liberdade dos governados e a autoridade dos governantes prevalecerá solução favorável à liberdade. No governo representativo, os representantes devem respeitar os representados, pois é em nome destes que exercem o poder; a soberania é dos governados e não dos governantes. O sistema constitucional brasileiro adota o governo representativo e valoriza a liberdade. Na vigente Constituição, os princípios e regras fundamentais antecedem e condicionam as regras de organização do Estado; iluminam o caminho e limitam a vontade dos governantes. Não fora assim, exceções aos princípios e regras seriam criadas ao talante dos governantes; nulificar-se-iam as garantias constitucionais dos brasileiros; a segurança das pessoas seria letra morta no texto constitucional. As fronteiras da liberdade e da autoridade são traçadas pelo legislador constituinte; aos governados e governantes cabe respeitá-las.

Agentes políticos tratam de “carta” a vigente Constituição brasileira. Subjaz a esse tratamento o espírito autoritário. Carta é um documento escrito, unilateral, de cuja elaboração o destinatário não participa. Há cartas da sociedade civil: carta de crédito, correspondência, alforria, vinhos. Há cartas do governo com finalidade oficial: carta régia, patente, rogatória, precatória. Há cartas da sociedade política: o reino e a república são organizados mediante um documento escrito e outorgado pelos governantes. No Brasil, as leis magnas de 1824, 1937 e 1967 foram cartas políticas outorgadas pelo imperador, pelo ditador civil e pela oligarquia militar, respectivamente. Quanto às leis magnas de 1891, 1934, 1946 e 1988, tiveram origem democrática, elaboradas e votadas pelos representantes do povo reunidos em assembléia nacional constituinte, motivo pelo qual se afigura inadequado apelidá-las de “carta”. O inconveniente apelido provém do impulso autoritário. Essa tendência autocrática, que reflete a necessidade dos organismos biológicos de afirmarem a si próprios, mais se acentua quando o ser humano desempenha função pública, ainda que no grau menos elevado da hierarquia estatal.

O tratamento “carta” também resulta da imitação, tendência muito forte na patuléia que menospreza a brasilidade e exulta diante de qualquer insignificância estrangeira. No século XIII, João, monarca dos ingleses, se dizendo inspirado por Deus e motivado a salvar almas (na verdade, pressionado pelos barões) baixou unilateral e soberanamente a Magna Charta Libertatum (1215), embrião da constituição consuetudinária formada mediante sucessivas conquistas de aristocratas e burgueses da Inglaterra (petição de direitos, habeas corpus, declaração de direitos, ato de estabelecimento) e que serviu de inspiração às constituições escritas da Europa continental e da América. A simiesca imitação da nomenclatura anglo-saxônica aparece quando brasileiros tratam de “carta” o democrático texto constitucional de 1988. Essa imitação exterioriza uma esquizofrênica necessidade de submissão: (i) ao grande pai estrangeiro (colonizadores, personalidades, senhores da guerra, organismos públicos e privados da Europa e dos EUA); (ii) ao grande pai nacional (imperador, presidente, ditador, governo). A raiz dessa esquizofrenia está no inconsciente coletivo, em cujas profundezas estão sedimentadas a subserviência e o complexo de inferioridade (ou de vira-latas, na dura e pejorativa expressão de Nelson Rodrigues, aplicável a considerável parcela da população). Em profundidade, na terra e no mar, o governo busca petróleo; a educação desliza na superfície social; o atavismo repousa nas profundezas da alma brasílica.

Embora a Constituição em vigor declare o Brasil uma república democrática, os governantes comportam-se autocraticamente. O traço caudilho ainda é forte na fisionomia política destas plagas. A Constituição declara inviolável o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. No entanto e sem cerimônia, os governantes arredam essa inviolabilidade sob o capcioso argumento de que não há direito absoluto; tudo é relativo; o interesse público prevalece sobre direitos individuais. O falacioso argumento abre exceção que o texto constitucional não contempla. Na república democrática não há interesse público maior do que o de respeitar a Constituição e os direitos fundamentais que ela assegura. Somente se admitem as exceções estabelecidas pelo legislador constituinte originário.

Há direitos naturais e políticos (do homem e do cidadão) conquistados pela civilização ocidental, registrados na história, declarados em documentos internacionais e incorporados à ordem constitucional brasileira por decisão soberana dos representantes do povo reunidos em assembléia constituinte. Da soberania popular decorre intangibilidade desses direitos, limites intransponíveis pelo governo enquanto o povo for soberano e permanecerem em vigor o regime democrático e os fundamentos da república brasileira (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político).

Quanto à supremacia do interesse público, há ressalvas no direito constitucional contemporâneo; nem sempre o interesse privado está isolado; às vezes, forma rede social a ser preservada diante das investidas do governo. O interesse público também cede diante dos direitos assegurados aos governados na Constituição (ressalvadas as exceções nela contidas). Quando há confronto entre interesse de um lado e direito do outro, prestigia-se o direito, dada a superior importância de preservar a ordem jurídica. O exame da prevalência tem lugar apenas quando se confrontam interesse público e interesse privado. O caráter eventual da supremacia do público em relação ao privado deve-se à possibilidade jurídica de a sociedade civil controlar a forma e o conteúdo dos atos administrativos e políticos gerados pelo governo.

No plano dos fatos, acontece choque de liberdades entre os governados. A colisão resolve-se pacificamente pelo exame das circunstâncias e aplicação de critérios de proporcionalidade e razoabilidade ao caso concreto; prevalecerá apenas uma das normas em confronto. O exemplo mais citado é o da colisão entre a liberdade de manifestação do pensamento, de um lado e, de outro, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. O Judiciário é chamado a decidir, no devido processo legal, se houve ou se não houve abuso no exercício da liberdade de expressão e informação. Se a resposta for positiva, o autor do abuso sofrerá as penas da lei.

Regulamentar a liberdade de imprensa está no rol das ações autoritárias dos governantes. Poupe-se o Estado como instituição política, em face da sua estrutura: povo + governo + território. O vício é das pessoas investidas no poder (parlamentares, chefes de governo, ministros, eminências pardas) com suas ideologias e idiossincrasias aliadas a interesses inconfessáveis. Essas pessoas impõem sua vontade e seu modelo político, social e econômico contornando os princípios constitucionais. Nessa tarefa contam, às vezes, com apoio dos seus ministros na corte suprema. As instituições funcionam como biombos para ocultar personalidades e propósitos revolucionários, subversivos ou desonestos. Em relação aos valores éticos e jurídicos contidos na Constituição, a confraria tem atitude amoral. Graças ao voto popular que os conduziu ou reconduziu ao poder, confrades em cargos eletivos se consideram absolvidos dos desatinos do passado e do presente e autorizados a manter a censurável conduta no futuro. De acordo com essa esperta e maliciosa interpretação do voto, o povo, no exercício da soberania, homologa os atos lícitos e ilícitos praticados pelos eleitos.

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