sábado, 18 de dezembro de 2010

DIREITO

Garantia de sigilo. Reserva de jurisdição.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal debruçaram-se novamente sobre a questão do sigilo bancário ao apreciar a ação principal no recurso extraordinário (sessão de 15/12/2010). A matéria fora discutida na ação cautelar em que se pleiteava efeito suspensivo ao recurso (sessão de 25.11.2010). O tribunal decidiu que o sigilo só pode ser levantado mediante ordem judicial. Essa reserva de jurisdição é garantia atribuída pelo legislador constituinte às pessoas naturais e jurídicas a fim de protegê-las da indiscrição, da devassa e da indevida utilização dos dados. Aos juízes e tribunais cabe examinar, caso a caso, a necessidade, a utilidade e a legitimidade do interesse de acesso a dados protegidos pelo sigilo.

Da decisão do tribunal depreende-se que a transferência de dados mesmo entre instituições sujeitas ao dever de guardar sigilo tipifica violação à garantia constitucional. A transferência acarreta circulação externa de dados. Caracteriza, ipso facto, violação ao dever de sigilo do sujeito que os detém. A guarda é obrigação individual do detentor dos dados. Para fornecê-los a terceiros, tenham ou não o mesmo dever de sigilo, o depositário deverá obter autorização judicial. A rigor, o sigilo dos dados, da correspondência e das comunicações telegráficas não podia ser levantado nem por ordem judicial, porque o legislador constituinte o revestiu de inviolabilidade absoluta; só abriu exceção à inviolabilidade das comunicações telefônicas e, assim mesmo, exigiu prévia ordem judicial. Os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito (CF 58, §3º) também encontram limites na inviolabilidade dos direitos e não devem ir além das exceções admitidas no texto constitucional. As exorbitâncias dos agentes públicos justificam o conceito, no plano internacional, de falta de seriedade dos brasileiros. Quando a arbitrariedade, o autoritarismo, a esperteza malandra, a relativização despudorada, a flexibilidade safada, vigoram por trás da fachada democrática, pessoa alguma está segura dos seus direitos.

O argumento da revista imposta aos passageiros nos aeroportos não convenceu a maioria dos ministros. Efetivamente, trata-se de argumento inadequado para se contrapor à garantia constitucional. A revista é procedimento policial regular observado em todos os países, com maior ou menor rigor, mormente em face do estado de necessidade decorrente do terrorismo internacional. Inclui-se nos atos executórios legítimos do agente visando à segurança pública; destina-se à verificação da existência, na bagagem e no corpo dos passageiros, de coisas com potencial ofensivo à vida, ao patrimônio e à segurança dos indivíduos e da coletividade. Não se cuida, pois, de violar sigilo de dados e mensagens.

Entra na classe dos sofismas o argumento sobre a finalidade do sigilo: impedir a interceptação das comunicações e não o acesso aos dados. O sujeito pode interceptar a correspondência sem abri-la. O sigilo estará resguardado. Objeto do sigilo é o conteúdo: a mensagem e os dados contidos em cadastros, contas e arquivos. Do acesso resulta conhecimento da coisa acessada. Se a mensagem ou os dados estiverem protegidos pelo sigilo, o acesso desautorizado entra na categoria do ilícito por transgredir norma constitucional.

Invocar a faculdade da administração tributária de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (CF 145, §1º) é mais um cerebrino esforço para sustentar o insustentável. O verbo identificar utilizado no dispositivo constitucional significa estabelecer a identidade das coisas. Entendê-lo no sentido relacional (tornar algo igual a outro) desatende aos fins da norma. Quando essas coisas estiverem sob o manto do sigilo e houver necessidade de identificá-las para efetivar objetivos do sistema tributário, a administração tributária deverá solicitar autorização judicial. Esse é o modo de respeitar os direitos individuais, tal como determinou o legislador constituinte. O dispositivo constitucional exige que a identificação se faça nos termos da lei. Para ser válida, a lei deve se enquadrar na Constituição, formal e materialmente.

O ministro Gilmar Mendes reconsiderou o voto proferido na ação cautelar e compôs a maioria. Essa faculdade de repensar decisões é própria da maturidade, da reflexão e da consciência do ser humano. A ausência do ministro Joaquim Barbosa e a retirada do pedido de vista formulado pela ministra Ellen Gracie permitiram o julgamento definitivo do recurso extraordinário. O voto do ministro Joaquim Barbosa tanto poderia empatar a votação como aumentar o número da maioria, agora, com mais ampla visão da matéria exposta no recurso extraordinário. Na ação cautelar, o voto era para referendar a decisão do relator que concedera a medida liminarmente. Quanto ao valor do sigilo contraposto à invasão da intimidade e da privacidade no mundo contemporâneo, ao legislador constituinte originário, no exercício da soberania nacional, compete decidir se mantém ou não a garantia no ordenamento jurídico. Por enquanto, aos poderes constituídos (legislativo, executivo, judiciário) cabe respeitá-la.

A experiência forense revela judicatura de magistrados fazendários, isto é, juízes que tendem a favorecer a Fazenda Pública (municipal, estadual, federal) por serem oriundos de procuradorias e consultorias do Executivo, por gratidão ao governante que os nomeou para o cargo, ou por receberem subsídios dos cofres públicos. Esses barnabés de toga fazem manobras cerebrinas, se valem de sofismas, tiram água de pedra, no intuito de interpretar as normas e decidir os casos concretos de modo favorável à Fazenda Pública. A privacidade, a dignidade, o patrimônio e demais direitos das pessoas naturais e jurídicas são colocados em plano secundário. Essa classe de magistrados segue a linha autoritária do Executivo. O presidente Fernando Henrique se referia de modo irônico às cláusulas pétreas da Constituição. O presidente Luis Inácio se portou com igual menosprezo pelas liberdades públicas. Do anedotário nacional consta que Getúlio Vargas assim se expressava: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei (na versão punitiva). Advertido sobre óbice legal aos seus propósitos, Napoleão, com gesto de enfado e desprezo, teria dito: a lei, ora, a lei (paradoxalmente, sob o seu governo foi promulgado o Código Civil francês, monumento jurídico reconhecido internacionalmente). Mando irrestrito do governo e obediência irrestrita do povo tem sido o lema dos autocratas de todos os matizes.

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