domingo, 1 de outubro de 2023

NUVENS

Ele agradece a deus pela concessão de mais um dia. Preenche a primeira hora de cada manhã com exercícios físicos no quintal da sua casa. Contempla as montanhas. Observa o movimento das nuvens. Como se fossem chumaços de algodão, elas se aproximam umas das outras, unem-se, formam um bloco. A nuvem assim encorpada cobre as montanhas, sobe e continua a se mover sem pressa alguma. Depois, começa a se desfazer e a desenhar figuras no céu.
Quando criança, Ariosto – esse era o seu nome – pensava que as nuvens se formavam no céu e pairavam sobre cidades e montanhas. Às vezes, elas ficavam muito escuras, ameaçadoras, revoltosas, trovoavam, lançavam chuvas e raios. A sua avó materna, italiana católica fervorosa, dizia que a fúria da natureza era sinal da zanga de deus provocada pelos pecados dos adultos e das crianças rebeldes e desobedientes. Segundo vociferava o padre da paróquia, “os homens são pecadores e devem fazer penitência para obter a misericórdia divina e salvar suas almas das labaredas do inferno”. Aos domingos, Ariosto ouvia essa ladainha durante a missa enquanto o sacristão sacudia o saco das esmolas diante do peito de cada fiel, insistentemente, percorrendo, um após outro, os bancos da igreja. O saco ficava pendurado na extremidade de uma vara que o sacristão segurava pela ponta oposta. Na sua ingenuidade infantil, Ariosto ficava intrigado. Só os homens? E as mulheres, não são pecadoras? Será que elas são protegidas por Nossa Senhora?  
Ainda garoto, Ariosto se admirava com a cerração matinal. Quando moço, associou a cerração à nuvem. Passeava pela neblina como se estivesse andando nas nuvens. Afinal, como dizia a sua mãe, ele sempre andava “com a cabeça nas nuvens”. A neblina era uma nuvem ao alcance dos pés. Pilotando automóvel, ele reduzia a velocidade, mas, às vezes, preferia parar e aguardar no acostamento até a neblina enfraquecer e melhorar a visibilidade. “Cautela e caldo de galinha mal não fazem”, ditado que ouvia na família. 
Ariosto lembrava dos ensinamentos de ciências naturais do curso ginasial da sua adolescência. Com o calor do sol, as águas do mar, do rio, da lagoa, evaporam. O vapor quente sobe e atinge o ar frio nas alturas. Desse encontro, formam-se os ventos e as nuvens. No entanto, ele viu nuvens que não desciam sobre as montanhas e sim que subiam das suas bases. Oriundas das águas dos vales e sopés, as nuvens se elevavam até cobrir a montanha. Então, deduziu, assim como lá em cima é aqui embaixo, e fez um muxoxo ao concluir o seu raciocínio.
Certa ocasião, ele percebeu detalhe que o incomodou. As nuvens nem sempre cobriam as montanhas. Na verdade, elas cobriam a visão que ele tinha das montanhas. Sentiu-se vítima da ilusão de ótica. Caso ele se postasse na montanha, notaria a distância entre ela e as nuvens. A beleza seria a mesma, porém, a informação seria diferente. Veria que as nuvens situadas à frente da montanha levantavam-se de baixo para cima, saíam da terra e não do céu. 
Ariosto já havia testemunhado esse fato na sua adolescência, mas, a memória apenas registrou o que os olhos viram sem especular. Jovem aspirante a alpinista, ele escalara algumas vezes a cadeia de montanhas do seu estado natal. Em uma dessas ocasiões, resolveu dormir no ponto mais alto da cordilheira. Mirou as estrelas e as desafiou a se esconderem. Não havia nuvens. As estrelas não tinham como se esconder e ficaram mais brilhantes. Ele não lhes deu importância. Recusou-se a lhes servir de plateia e foi dormir no leito de pedra. Sem a atenção dele, as estrelas ficaram a brilhar umas para as outras. Amanheceu. Ele sentiu o frescor da névoa matutina. As nuvens ocultavam o sol e o azul do firmamento. 
Na segurança do seu lar, na quietude do seu quarto, Ariosto meditava sobre as nuvens que cobrem os seus pensamentos e os seus sentimentos. Afastando as nuvens do seu cérebro, ele buscava o que elas ocultavam: o sol espiritual do sublime conhecimento. Ele ficara encasquetado com a nuvem do mundo tecnológico. Tal como a nuvem cerebrina, a nuvem tecnológica não era gás, nem outra coisa real. Ela ocultava dados contidos em partículas eletromagnéticas. Tratava-se de ambiente virtual de armazenamento de dados acessíveis por meio de aparelhos sincronizados, ferramenta invisível para armazenar virtualmente arquivos sem ocupar espaço na memória do aparelho celular. Sonhador, Ariosto imaginou essa nuvem como um setor do cinturão eletrostático que envolve o planeta. Demorou a conciliar o sono. 

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