domingo, 19 de fevereiro de 2023

QUESTÃO INDÍGENA II

No programa Estúdio i de 13/02/2023, do Canal 40, vieram à balha o ouro extraído do território Yanomami e a lei federal 12.844 de 19/07/2013. Segundo a jornalista âncora do programa, a matéria sobre ouro contida nessa lei foi um “jabuti”. Os seus colegas concordaram. Cabe ponderar.  Jabuti não sobe em árvore e se nela está, alguém lá o colocou. No caso, a árvore era o projeto de lei e o “jabuti” era a matéria estranha ao projeto nele embutida indevidamente. A citada lei trata das matérias assim resumidas na ementa: 1) Amplia o valor do benefício safra 2) Amplia auxílio emergencial 3) Autoriza a distribuição de milho para venda a pequenos criadores 4) Institui medidas de estímulo à liquidação ou a regularização de dívidas 5) Prorroga o regime especial de reintegração de valores 6) Altera o regime de desoneração da folha de pagamentos 7) Dispõe sobre a comprovação de regularidade fiscal pelo contribuinte 8) Regula a compra, a venda e o transporte de ouro. 
Essa lei é um pacote de bondades e um hino à boa-fé. Ainda que a matéria sobre ouro não constasse do projeto original, a sua inclusão mediante emenda combina com a normatização feita em bloco. A mixórdia dessa normatização está em descompasso com a técnica legislativa, principalmente com os artigos 7º, I + 11, I/II, da LC 95/1998, que regula a elaboração das leis. Fruto de emenda, a disciplina da venda, compra e transporte de ouro merece prudente revisão e tratamento legal separado. A constitucionalidade dos artigos 37 a 42, da lei 12.844/2013, mostra-se duvidosa e merece apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Nota-se, também, colisão do seu artigo 40 com o artigo 180, do Código Penal, que trata do crime de receptação. Ao presentear o comprador com a boa-fé presumida, a lei favoreceu o receptador do ouro. Além disto, a lei perdoou erros cometidos anteriormente nesse campo. O legislador limitou-se a admoestar os transgressores do direito como se lhes dissesse: “o que vocês fizeram é muito feio; não façam mais isso; doravante, cumpram a lei”. 
A Constituição da República exige, para a lavra de minérios em território indígena, prévia autorização do Congresso Nacional e prévio consentimento da comunidade. A lei ordinária, porém, menciona a necessidade de prova da autorização pelo poder público federal e órgãos da administração pública federal. Isto, na prática, desloca a atribuição do Poder Legislativo para o Poder Executivo em frontal violação do mandamento constitucional. 
Questionamento: I. O garimpo na reserva Yanomami foi autorizado pelo Congresso Nacional mediante lei, decreto legislativo ou resolução? II. O processo legislativo, se houve, foi legítimo? III. O povo Yanomami foi ouvido? IV. O seu legítimo representante participou da negociação? V. Houve livre consentimento? 
A Constituição da República concede à comunidade indígena participação no resultado da lavra. Se cumpridas as regras constitucionais, o povo Yanomami seria rico e não se encontraria no estado de miserabilidade evidenciado pelas imagens transmitidas pela emissora de televisão. 
Questionamento: I. Do ouro extraído da reserva Yanomami, quem ficou com a parte que cabia à comunidade indígena? II. Além do Banco Central, quais foram as pessoas físicas e jurídicas que fizeram as maiores aquisições de ouro de 1988 a 2023? III. As aquisições feitas pelo Banco Central e demais pessoas foram monitoradas de modo pontual, honesto e eficaz? IV. Houve artifício para ocultar a origem do ouro? V. O legislador recebeu propina para votar lei em benefício dos fraudadores? VI. A lei facciosa foi obtida a peso de ouro? VII. Como o povo Yanomami recuperará o ouro que lhe foi subtraído? VIII. Como serão recolhidos os tributos sobre o ouro ilegalmente extraído e comercializado? 
A polícia, o ministério público, a defensoria pública e a receita federal terão muito trabalho para cuidar dos interesses do estado, da sociedade e da comunidade indígena nesse episódio da história do Brasil. Quanto aos criminosos, eles dispõem de dinheiro para contratar advogados e também para comprar parlamentares, presidentes, governadores, prefeitos, juízes e funcionários públicos. As estátuas do bandeirante na capital de São Paulo e do garimpeiro na capital de Roraima são homenagens prestadas pela elite econômica aos desbravadores do sertão que acumulam atividades de buscadores de ouro, de caçadores, escravizadores e exterminadores de índios e de violadores de mulheres. O seringueiro é homenageado na capital do Acre com a estátua do ambientalista Chico Mendes. 
O Senado criou Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para acompanhar a crise humanitária e a retirada dos garimpeiros da reserva Yanomami. Participam da CPI três senadores do Estado de Roraima onde ocorre o garimpo ilegal. Raposas cuidando do galinheiro. Os senadores não estão livres da suspeita de integrarem a rede do comercio ilegal de ouro. Eles pretendem indenizar com dinheiro público os transgressores da lei; convergem no propósito de mitigar o sofrimento dos garimpeiros, tratá-los com dignidade, indenizá-los com dinheiro do erário. A esse discurso dos senadores falta amparo moral e jurídico. O fato de algum garimpeiro ser empregado não retira o caráter criminoso do seu trabalho na reserva indígena. Não se absolve homicida que mata alguém em obediência à ordem do patrão. Não se condena shopping center a indenizar o ladrão que se feriu ao arrombar uma loja. Esses indivíduos merecem bom e digno tratamento na cadeia.

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