sábado, 4 de janeiro de 2020

JUÍZO DAS GARANTIAS

O Congresso Nacional votou e o Presidente da República sancionou a lei 13.964/2019, com o demagógico nome de “lei anticrime”, que altera a legislação penal. O legislador [i] refugou a regra que constava do projeto, sobre execução da pena de prisão antes de a sentença transitar em julgado e [ii] incluiu regra que não constava do projeto, instituindo o juiz das garantias com secretaria própria. A criação desse órgão judiciário e a vigência da lei estão sendo questionadas.
A lei anticrime harmoniza-se com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que manteve íntegro o inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, que tem por base o artigo XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
Precavido contra a parcialidade dos juízes, escaldado na caldeira ditatorial e determinado a proteger a liberdade do cidadão contra erros e abusos na esfera judiciária, o legislador constituinte de 1987/1988 estendeu o limite da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Em consequência, a sentença só poderá ser executada depois de o processo percorrer os seus trâmites, do piso à cúpula do Poder Judiciário. Os nefastos episódios das operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” demonstraram o acerto da decisão do legislador constituinte e mostraram a temeridade de se executar pena privativa da liberdade antes de a sentença transitar em julgado. A nova lei também sintoniza com a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados de não colocar em pauta a proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre mudança na citada garantia constitucional. A PEC está viciada na raiz, posto que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. [CR 60, §4º, IV].
Regras não autoaplicáveis devem ser regulamentadas pelo chefe do Poder Executivo, titular do poder de regulamentar as leis. Os chefes do Legislativo e do Judiciário não dispõem desse poder. Adição, redução, substituição, revogação, só por lei posterior. Compete ao legislador fixar o período da vacatio legis. A lei anticrime já foi promulgada e publicada. Entrará em vigor a partir de 24/01/2020. [Art. 20]. Suspender vigência de lei por ordem judicial sem violar o princípio da separação dos poderes só é admissível se houver vício de inconstitucionalidade. Ao STF compete examinar a constitucionalidade da lei. [CR 96, II, b + d; 102, I, a].
A lei anticrime introduz mudanças não só no código de processo penal como também no código penal e em leis esparsas. Portanto, impugnar a criação do órgão judiciário não justifica suspender a vigência da lei. Afigura-se mais adequado ao caso e consentâneo com o direito, suspender parcialmente a eficácia e não a vigência da lei.
Em sendo a criação do órgão judiciário matéria de relevante interesse público e de urgência ante a iminência da entrada em vigor da lei, impõe-se tratamento imediato, porém, dentro das balizas constitucionais, legais e regimentais. Estribada na harmonia dos poderes, a solução está nas mãos de quem votou a lei e de quem a sancionou. Primeira vertente: o Presidente do Congresso Nacional, “ad referendum” dos congressistas, suspenderá a eficácia do dispositivo da nova lei que criou o juízo das garantias e respectiva secretaria [ii] assinará prazo (90 dias?) para a estruturação e o funcionamento do novo órgão judiciário, missão mais fácil do que a implantação dos juizados especiais [iii] convocará sessão extraordinária do Congresso Nacional para deliberar sobre essa matéria. Segunda vertente: o Presidente da República: [i] expedirá medida provisória suspendendo a eficácia do dispositivo da nova lei que criou o referido órgão [ii] assinará prazo (90 dias?) para a necessária implantação [iii] regulamentará por decreto, o mencionado dispositivo legal. Terceira vertente: o Presidente do Conselho Nacional de Justiça, conformando-se às decisões dos chefes dos outros poderes nessa emergência, baixará instruções à justiça federal e à justiça estadual para implantação do novo órgão. Duas ou mais comarcas de baixa densidade demográfica situadas na mesma região geográfica podem ser reunidas em circunscrição única para serem atendidas por um só juiz de garantias. As grandes capitais podem ser divididas, para fins de organização judiciária, em duas ou mais regiões, cada qual com um juiz de garantias. 
A lei anticrime atenua eventuais efeitos sociais negativos decorrentes do extenso limite constitucional da presunção de inocência. A prisão em flagrante e a prisão cautelar foram mantidas. Procedimento judicial foi introduzido na fase extrajudicial da investigação criminal (anterior à instauração do processo). A função do juiz das garantias limita-se ao controle da legalidade do inquérito policial no que concerne aos direitos individuais. A sua competência legal inclui: [i] concessão de habeas corpus anterior ao oferecimento da denúncia [ii] trancamento do inquérito [iii] exame da prisão em flagrante [iv] audiência de custódia [v] homologação de acordos [vi] instauração do incidente de sanidade mental [vii] requisição ao delegado de informações, laudos e documentos [viii] apreciação dos requerimentos relativos a:  prisão cautelar, prova, acesso aos dados da investigação, prorrogação de prazos, meios de obtenção de prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.
A função supervisora do juiz das garantias não inclui a produção de prova, tarefa que cabe exclusivamente ao delegado e ao agente do ministério público. Apesar disto e dependendo das suas qualidades pessoais, o juiz pode contribuir para a redução da politicagem nos inquéritos e para a celeridade na investigação criminal.
O juízo de admissibilidade da denúncia ou da queixa-crime cabe ao juiz das garantias, ponto final das suas atribuições. Os autos desse procedimento judicial prévio ficam arquivados na secretaria própria desse juízo. O processo criminal será instaurado se a petição inicial do ministério público (denúncia) ou do ofendido (queixa-crime) for deferida pelo juiz (recebida). A partir daí, entra em cena o juiz ordinário que presidirá o processo. O juiz que atuar no procedimento judicial prévio fica impedido de atuar no processo. [Na processualística, o conceito de procedimento (sequência de atos ordenados segundo a forma e o modo estabelecidos em lei) não se confunde com o conceito de processo (relação jurídica orientada para obtenção da tutela jurisdicional)].
O procedimento judicial prévio ora instituído não afasta a eventualidade de abuso, arbitrariedade e conluio entre o juiz das garantias, o delegado e o agente do ministério público, tal como aconteceu na operação lava-jato. O juiz das garantias pode ser do tipo Moro, principalmente no âmbito da justiça federal. As características humanas estão presentes nos magistrados e nem todos têm a mesma fortaleza de espírito  para suportar os necessários freios éticos e jurídicos. Na parcela dos deficientes morais, além do caráter mal formado e da vulgaridade, nota-se linguagem sofrível e indigência cultural.

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