quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A JUÍZA O PAPA E DEUS

Texto da lavra de uma juíza de direito sobre dois episódios por ela testemunhados, ocorridos no Leblon, outrora aprazível bairro da Zona Sul da Capital do Estado do Rio de Janeiro, provocou saudável debate entre os membros da minha família no whatsapp e motivou o presente artigo.  
Primeiro episódio. Garoto pobre, negro, vendia cartelas de chiclete, foi escorraçado de estabelecimento comercial. O menino chora. Lamuria-se: “estou só tentando trabalhar”. A juíza consolou o menino e adquiriu uma cartela. Diante do valor que lhe foi pago, o menino quis entregar todas as cartelas. A juíza recusou. Com a venda das cartelas restantes ele aumentaria a renda naquele dia. O menino agradeceu e abençoou a juíza: “Deus te proteja”.   
Segundo episódio. Garoto pobre, negro, caminhava pelo calçadão da praia. Portava cartaz com os dizeres: “chega de racismo”. A juíza viu esperança naquele ato.  
Choque de realidade. Fora do gabinete de trabalho e do mundo de papel, talvez sob o influxo do espírito natalino e da esperançosa passagem do ano (2019/2020), a juíza se deparou com ocorrências que despertaram sua reflexão sobre desigualdade social, maldade humana e ausência de Deus. 
A presença do garoto incomodou o dono da loja e/ou o gerente do shopping, o que não justifica a expulsão violenta. O menino diz querer trabalhar. Muito bom. Sem prejuízo do estudo, melhor ainda. Poderá trabalhar em local público sem perturbar a ordem e os bons costumes. Em local privado, deve obter autorização do proprietário ou do preposto. Vontade e direito de trabalhar não significam permissão para invadir propriedade alheia, nem para assediar pessoas de modo insistente e constrangedor. Assim é o direito vigente no estado do qual somos cidadãos. Quem maltrata animal merece a punição prevista em lei. Se o animal maltratado for humano e estiver na infância, a lei deve ser aplicada com essa circunstância agravante. Ao invés de dar voz de prisão ao agressor, a juíza preferiu socorrer o menino. O vestido cobriu a toga. O coração materno ofuscou a mente julgadora. 
Ponto sensível. Menino pobre e negro abençoa mulher branca desconhecida e caridosa. Bênção de agradecimento. Quando feita por criança de modo espontâneo, sincero e comovido, a bênção não encontra paralelo neste mundo, seja em relação à benção que vem dos pais e avós, seja em relação à que vem do Papa. Algo sublime há também no espontâneo abraço de saudade e/ou de alegria dado por uma criança. Momentos que marcam a alma das pessoas e suavizam o peso dos pecados.  
Questionamento. A juíza pergunta: onde encontrar Deus? Segundo o seu pensamento, respeito, amor e igualdade são atributos de Deus que não se encontram nos humanos; Deus é o fim e os humanos são o meio; não fizemos o suficiente para que Ele esteja no meio de nós.
Comentário – 1. Respeito foi o que faltou à mulher que segurou com força o Papa, puxou-o de modo violento e quase o derrubou. O pontífice reagiu instintivamente em legítima defesa ao bater nas mãos da agressora para se livrar do aperto. Os adversários internos e os inimigos externos do Papa e da Igreja aproveitaram o incidente para escandalizar. Todavia, muito pior do que o gesto aflito de Francisco, foi a conduta agressiva de Jesus, violência física, verbal e moral que os cristãos chamam de “ira santa” ou "ira divina".
No seu ministério na Galileia, Jesus: [1] Humilhou sua mãe e seus irmãos que aguardavam do lado de fora da reunião, impedidos de entrar. Avisado, ele se omitiu. Tal e qual um demagogo, ele aproveitou o ensejo para formular pergunta retórica: Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos? Olha ao seu redor, indica o auditório e diz: Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. [2] Mostrou-se  magoado por ser alvo da descrença dos seus conterrâneos (galileus) e dos seus familiares (pais e irmãos): É só em sua pátria e em sua família que um profeta é desprezado. [3] Afrouxou laços familiares e aventou discórdia: Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer, não a paz, e sim a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra e os inimigos do homem serão as pessoas de suas próprias casas
No seu ministério na Judeia, Jesus: [1] Ofendeu os judeus (fariseus + saduceus – essênios): hipócritas, insensatos, cegos, sepulcros caiados, raça de víboras, raça perversa e adúltera. [2] Derrubou mesas, cadeiras e chicoteou os negociantes no templo: Não está porventura escrito: "A minha casa chamar-se-á casa de oração para todas as nações"? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões. [3] Rogou pragas (a figueira secou, Jerusalém foi destruída).
Comparado com esse comportamento de Jesus, o ato defensivo e humano do Papa Francisco é perfeitamente compreensível e incensurável.
Comentário – 2. A juíza parte do pressuposto de que deus existe. Entretanto, nessa questão metafísica só há crença e nenhuma certeza. Deus pode ser produto da debilidade, da credulidade e da imaginação humanas. Ante a magnitude e a beleza do cosmos e a descoberta das leis da natureza, focados na coesão, na atração e na afetividade naturais, os humanos são levados a crer na existência de uma inteligência superior que tudo criou e a tudo abarca e governa amorosamente. Na concepção dos místicos, “deus é vida” (energia criadora e transformadora), “deus é luz” (inteligência e sabedoria), “deus é amor” (affectio tenendi sine conditio). Deus está presente nas dimensões física e espiritual do universo (panteísmo). Possível sentir a sua presença. Impossível enxerga-lo, pois, deus não tem forma e nem substancia material. Quanto aos humanos, são seres do acaso cósmico. Inteligentes e pretensiosos, os humanos civilizados se consideram semelhantes à divindade. No entanto, a nossa relevância circunscreve-se ao mundo da cultura do qual somos os criadores e no qual somos [i] a fonte de todos os valores [ii] a medida de todas as coisas [iii] fundadores de religiões [iv] organizadores da vida social [v] produtores: (a) de arte (b) de conhecimento técnico, científico e filosófico (c) de bens necessários, úteis e interessantes. 
Comentário – 3. Atribuir virtudes a deus não significa que ele as tenha. Deus pode não ser bom e nem mau, justo e nem injusto, misericordioso e nem severo. Bondade e maldade, justiça e injustiça, misericórdia e severidade, resultam da natureza bipolar dos humanos (angelical & demoníaca). Deus não interfere na vida dos animais, quer dos racionais, quer dos irracionais. Disto cuidam a lei da causalidade em nível físico e a lei do karma em nível espiritual. Psicopatas na liderança das nações podem provocar guerra e até hecatombe nuclear. Deus nada tem a ver com isto. 
Comentário final. Desigualdade é inerente à natureza e à sociedade. No mesmo galho, uma folha não é igual a outra, apesar da semelhança. Entre os humanos selvagens, prevalece o mais forte, o mais experiente e/ou o mais astuto. Há divisão de tarefas e hierarquia. As necessidades básicas (água, alimento, abrigo) são satisfeitas de modo solidário. Uso social dos bens da comunidade. Entre os humanos civilizados [i] os que têm, podem mais, comem mais, vestem-se melhor e habitam casas confortáveis [ii] os que não têm, podem menos, comem menos, trajam-se mal e moram em barracos ou dormem ao relento. A mesma cor de pele e o mesmo nível de riqueza ensejam amizade entre aqueles que possuem. A miséria enseja solidariedade entre aqueles que nela estão mergulhados.     
Imbuídos do espírito de justiça e estribados na ideia de igualdade, os humanos civilizados tentam compensar as desigualdades naturais e culturais.

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