sábado, 28 de setembro de 2019

BRASIL PLURAL


No dia 7 de setembro de 1822 nascia o estado brasileiro independente. Nas redondezas de um riacho na província de São Paulo, ouviu-se o grito do recém-nascido ao sair do ventre da lusa mãe. Ao completar 66 anos de vida, o rebento perdeu os cuidados dos escravos. Ao completar 67, perdeu os cuidados do imperador. Desde então, a sua existência é republicana sob os cuidados da caserna, a sua orientação tem sido aristocrática com intervalos ditatoriais. No curso dos seus 197 anos de idade completados em 07/09/2019, conheceu democracia apenas no papel, mas dela muito ouviu falar com louvor e admiração nas escolas de direito, nas assembleias e nos quartéis. Coleciona variada roupagem: portuguesa, francesa, inglesa, italiana, alemã, ianque, libanesa, japonesa, chinesa, eslava, hebreia. Os seus cidadãos, imitadores inveterados, subalternos, acríticos, avessos à vergonha, valorizam menos as suas e mais a linguagem e a cultura dos outros povos. A nudez dos índios ainda se vê nas praias (Porto Seguro, Ypanema, Guarujá, Cayobá, Camboryú, Tramanday). 
A partir do movimento social paulista de julho de 2013, ficou nítida a divisão dos brasileiros em grupos antagônicos. Antes dessa data, a separação já existia, porém, depois dessa data, tornou-se marcante e dramática. Ocorreram com mais ímpeto as relações de ódio entre os diversos segmentos da população. Rebentou a latente animosidade acumulada por mais de meio século. Estremeceu a unidade nacional e enfraqueceu o nacionalismo [aqui entendido como força moral de coesão e defesa dos valores e interesses básicos da comunidade humana complexa – elementar do estado brasileiro – que se convencionou chamar de nação]. A unidade formal e artificial do estado e da nação expressa na ordem jurídica brasileira, defrontou-se com o acirramento da real diversidade da população. Nessa tensão social (integração X separação) acentuaram-se na multifacetada sociedade brasileira as divisas: (1) política, entre Sul e Norte (2) econômica, entre milionários, ricos, bem remediados, menos remediados, pobres e miseráveis (3) ideológica, entre adeptos da extrema esquerda, da esquerda moderada, da extrema direita e da direita moderada (4) racista, entre brancos, morenos, negros, mulatos e indígenas (5) religiosa, entre católicos, protestantes, espíritas, judeus e muçulmanos.
Esses grupos apresentam, entre si, diferenças de hábitos, costumes, crenças, sentimentos, pensamentos, propósitos e interesses, o que tipifica algo assemelhado ao tribalismo. Configuram distintas comunidades dentro do país, cada qual com as suas próprias lideranças. Socialmente, cada comunidade herda do passado não só coisas boas, mas também coisas ruins, assim como, geneticamente, cada indivíduo herda não só boas qualidades, mas também deficiências. 
Colocam-se, pois, as seguintes questões: (1) Qual a melhor técnica para governar tais grupos: considera-los como um só corpo ou trata-los como entidades separadas? (2) Como respeitar as características e atender às necessidades e aos interesses de cada grupo? (3) Qual a política adequada a esse país culturalmente diversificado, de alta densidade demográfica, enorme extensão territorial, grande riqueza natural e relevante importância estratégica? (4) Como o governo desse país deve atuar internamente e nas relações internacionais sem ferir os princípios fundamentais declarados na Constituição e sem a postura de colonizado? 
Examinado o recente passado à luz dos fatos, sem as nuances da fé ideológica, a experiência de vida coletiva dos brasileiros mostra que (i) o governo aristocrático e o governo ditatorial favoreceram os grupos dos ricos e remediados, dos adeptos da direita, dos brancos, dos protestantes e dos judeus (ii) o ensaio democrático da primeira década do século XXI favoreceu os grupos dos pobres, dos adeptos da esquerda, das mulheres, dos negros, indígenas, homossexuais, católicos e espíritas.
Na dinâmica da vida social humana, a estabilidade tem duração (curta, média, longa). Na marcha do tempo contada em décadas, séculos ou milênios, operam-se mudanças políticas, econômicas e sociais. Isto se reflete nos sistemas de ensino, de saúde e de segurança, no modelo de família, nas relações de produção, circulação e consumo de bens, na disciplina da propriedade, na proteção ao meio ambiente, no incentivo à ciência, à tecnologia e ao esporte. Oscila o grau de liberdade e de igualdade. Há contrações e expansões. As potencialidades humanas necessitam de espaço, de tempo e de recursos materiais e imateriais para se manifestar e desenvolver.
No plano dos fatos, o exercício da liberdade sofre limitações pessoais e sociais (carências, doenças, deficiências, hábitos, convenções, regras, hierarquias, costumes, leis, autoridades). A desigualdade é permanente. Reduzi-la depende da educação, da capacidade e da honestidade do povo e chefias, da eficaz política de desenvolvimento e da justa distribuição da riqueza. Em nível global, pode-se ilustrá-la com dados do Banco Crédit Suisse/2018 utilizados pela Oxfam (organizações contra a desigualdade) e pelo Fórum Econômico Mundial de Davos/2019 (Suissa) e chegar talvez a 4 bilhões de pessoas com 1% da riqueza mundial, a 3 bilhões com 10% e a 700 mil com 89%. Em nível local, a desigualdade pode chegar a proporção semelhante: 150 milhões de brasileiros com 1% da renda nacional, 50 milhões com 9% e 50 mil com 90%. A pobreza gera estresse e depressão na massa popular. A estatística da desigualdade fica na lousa fria do intelecto. Senti-la na carne, repercute na alma. 
Na dimensão econômica, que no mundo atual condiciona a política, tanto pode haver progresso como pode haver estagnação e retrocesso, segundo a boa ou a má administração, seja sob governo democrático, seja sob governo autocrático. Os rumos da sociedade contemporânea obedecem decisões tomadas por administradores e consultores da área econômica no setor privado e no setor público que modelam o presente e deixam a um imprevisível futuro as boas e más consequências. As fontes principais estão, atualmente, nos EUA, na China e na União Europeia, sob influência dos detentores das grandes fortunas e do complexo industrial militar. Em cada país periférico, os legisladores oficializam esses rumos através da legislação e os juízes os consagram na jurisprudência. A massa popular vai de cambulha, submetida à ordem jurídica assim estabelecida. Quando a injusta privação passa do limite suportável, rompem-se os laços pacíficos da legalidade, cai o muro de contenção da barbárie, as labaredas do ódio ardem em todos os espíritos, a fúria tudo devasta, até que a ordem e a paz voltem a reinar.

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