Na rede de computadores circulou notícia sobre o
indiciamento em inquérito policial da modelo Najila Trindade por crime contra o
patrimônio (extorsão) e por crime contra a administração da justiça
(denunciação caluniosa) em que figura como ofendido o jogador de futebol Neymar
Jr. Ficou a impressão de que a autoridade policial mudou os papéis dos protagonistas:
o bandido virou mocinho e a vítima virou bandida.
Há coisas que o senso comum e a razão não aceitam. Exemplo:
um bagrinho engolir um tubarão. Cumpre lembrar que o inquérito policial implica
restrição a direitos das pessoas indiciadas. Se não houver justa causa para
instauração, o inquérito poderá ser trancado via habeas corpus e o respectivo delegado estará sujeito a inquérito
administrativo caso tenha agido de má-fé, incentivado, ou não, por meio de
propina.
A notícia menciona delegacia paulista na qual o
inquérito policial foi instaurado e usa linguagem técnica do indiciamento. Este
ato oficial é mais um fermento que faz crescer a importância do projeto de lei
sobre abuso de autoridade. Os vetos postos ao projeto pelo Presidente da
República são antijurídicos e contrários ao interesse público. Mister o
Congresso Nacional derruba-los e, assim, manter o texto original. O mau exemplo
dado por delegados, membros do ministério público e juízes nas operações do
tipo lava-jato não deve se converter em norma costumeira ou positiva. Cabe à
lei coibir as arbitrariedades e os abusos, colocar um freio no comportamento
desses indivíduos que se valem da autoridade de que estão investidos para
cometer crimes no exercício das suas relevantes funções públicas. Cabe aos
tribunais faze-lo, estribados na legislação vigente (4.898/65 + LC 64/90) até que
a lei nova entre em vigor.
O indiciamento da modelo feito pela autoridade
policial tem raiz nos fatos ocorridos num quarto de hotel em Paris [tema do
artigo “Estupro II” publicado neste blog em 08/06/2019]. Conforme se tornou
público, a modelo e o jogador marcaram encontro amoroso, quiçá início de namoro
(virtual + real) que incluía relação sexual. O jogador agrediu a modelo.
Ela se negou a prosseguir na relação porque ele a estava machucando. Ele
insistiu e a violentou. Para se justificar, o jogador alegou que estava “bêbado
e meio louco” (provavelmente drogado). Esse estado etílico em que ele se
apresentou para o encontro revela, por si só, falta de respeito para com a
mulher, má conduta própria de cafajeste.
Ante o escândalo veiculado pela imprensa, o jogador
publicou mensagens e fotos exibindo a nudez da modelo na rede de computadores.
Posteriormente, atribuiu a façanha a outra pessoa. Com essa atitude, o jogador
pretendia atenuar a sua culpa no lamentável episódio e atrair a opinião pública
a seu favor, objetivo fácil de alcançar neste país onde impera o machismo tanto
entre homens como entre mulheres. Nos episódios semelhantes a este, a mulher é
sempre considerada culpada antes de averiguação idônea, judicial ou
extrajudicial. As mulheres violadas recebem olhares de desconfiança e de condenação ao relatar a agressão sofrida. Por isto, elas silenciam para evitar maior
vergonha e sofrimento. Os estupradores agradecem.
Regressando ao Brasil, a modelo apresentou
notícia-crime à autoridade policial a fim de ser apurada a responsabilidade
penal do jogador. A apuração da responsabilidade civil pelas ofensas praticadas
independe da ação penal. O ofensor está sujeito a indenizar a ofendida por
danos físicos e morais. Contudo, o indiciamento da modelo no inquérito policial
serve à defesa do jogador para livrá-lo da responsabilidade civil e penal. Ao
contrário da modelo, o jogador é famoso e milionário. Enorme, pois, a chance de
escapar às obrigações e penalidades previstas na lei. A sua impunidade mostra-se
mais provável quando considerada a banda podre do aparelho estatal de segurança (polícia
+ ministério público + magistratura) exibida nas operações do tipo lava-jato e
nas recentes publicações do site jornalístico “The Intercept Brasil”. Possivelmente,
o jogador limpará a sua imagem e retornará de modo triunfal ao elenco da
seleção de futebol, deixando envergonhada a parcela decente do povo brasileiro.
Nos termos da lei brasileira, o crime de extorsão
consiste em constranger alguém – mediante violência ou grave ameaça e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica – a fazer,
a tolerar que se faça ou a deixar de fazer alguma coisa (CP 158).
Destarte, a autoridade policial, ao indiciar a modelo,
entendeu que ela usou violência ou grave ameaça contra o jogador ao denunciá-lo
e adverti-lo de que o processaria judicialmente a fim de obter reparação do
dano sofrido. Por exercer o seu direito, a modelo terá de responder a inquérito
policial e talvez a futura ação penal. Trata-se de inversão descabida e abusiva
promovida pela autoridade policial. Advertir alguém da intenção de propor ação
judicial não tipifica crime algum e sim, quando muito, leve ou coloquial
ameaça. Tentar solução amigável do aspecto econômico do caso, além de
recomendável pelo bom senso, é conduta em direito autorizada. Daí, a vigência
na ordem jurídica brasileira do instituto da mediação nas esferas judicial e
extrajudicial e também da conciliação na processualística. O tratamento dado ao
caso pela autoridade policial faz parecer que a modelo é perigosa e muito
poderosa, capaz de ameaçar gravemente, ferir e estuprar o pobre, frágil e
inocente jogador!
Astros do esporte costumam cercar-se de mulheres
bonitas, modelos na maioria, o que lhes reforça o status e a masculinidade, satisfaz a vaidade e enseja rendosa publicidade. Por outro lado, o namoro com os
astros ajuda a ascensão social e profissional das mulheres bonitas e charmosas,
quer no mundo da moda, quer no mundo artístico. Na época contemporânea, consumista
e movida a dinheiro, compreensível o interesse dessas mulheres em se relacionar
com homens ricos e famosos, o que não significa que elas sejam, ipso facto, mulheres sem dignidade e sem
qualquer valor. Diante dessa realidade, mulher alguma há de ser censurada por galgar
estágio social e econômico apoiada na sua beleza. Na febre possessiva do mundo
atual, cada indivíduo (homem ou mulher) luta com as armas naturais e culturais de
que dispõe. Entretanto, apesar desse forte materialismo, ainda vale a pessoa estar
em paz com a sua consciência, sintonizada com os preceitos morais e jurídicos
vigentes no seio da nação.
Segundo a lei brasileira, a denunciação caluniosa consiste
em dar causa à instauração de inquérito policial (ou de ação penal) contra
alguém imputando-lhe crime de que o sabe inocente (CP 339).
Destarte, no caso em comento, a autoridade policial
entendeu que a modelo mentiu ao acusar o jogador e que tal mentira gerou
inquéritos policiais destinados a apurar autoria e materialidade de crimes
inexistentes (estupro, lesões corporais, violação da intimidade). No entanto,
dos fatos trazidos a público, deduz-se o contrário, ou seja, que a participação
do jogador no episódio foi criminosa e não favorece a sua inocência. O fato de
eventual relacionamento sexual estar incluído no encontro amoroso livremente
combinado não significa que a mulher estivesse obrigada a consuma-lo.
Constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça
tipifica crime contra a liberdade sexual (CP 213). Além disto, esse jogador
exibe caráter arreliento e mal formado. A indecorosa conduta na trajetória da
sua vida esportiva e seus problemas tributários com o estado fiscal também
militam em seu desfavor. Perante o direito brasileiro, tanto a modelo como o
jogador gozam da garantia constitucional da presunção de inocência, como todos
os demais cidadãos. Entretanto, no âmbito nacional e internacional, a
repercussão do caso em tela não induz à formação de um juízo de inocência que
beneficie o jogador.
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