sábado, 17 de agosto de 2019

CARTAS DE CRISTO


Visando a posterior troca de opiniões, amigo emprestou-me o livro “Cartas de Cristo” (Curitiba. Almenara Editorial. 2015). Originalmente, o livro foi editado com o título Christ Returns – Speaks his Truth, nos EUA (Indiana, 2007). A mulher que se diz autora do livro não revela a sua identidade, o que torna a obra suspeita. A ética e o direito recusam guarida à irresponsabilidade inerente ao anonimato. Por consideração ao amigo, dediquei parte do meu tempo à leitura desse livro.
No prefácio, a autora se declara inglesa que, aos 80 anos de idade e a partir do ano 2000, começou a escrever essas cartas. Ela afirma que psicografava mensagens ditadas por Cristo. Isto lembra o médium brasileiro Chico Xavier, que psicografava mensagens ditadas por espíritos. Instruída para ficar anônima a fim de evitar a mácula do toque humano na obra divina, ela diz estar em conexão com Cristo desde 1966 e que ele não mais reencarnará e se veio agora em espírito, foi só para retificar erradas interpretações dadas aos seus ensinamentos. 
As cartas parecem arremedo das epístolas dos apóstolos. Declaram o propósito de ajudar a humanidade a evoluir espiritualmente e a viver melhor na Terra. Defendem a união de pensamento, crença e ação tendo como laço o culto à divindade, ponto comum a todas as religiões.
No campo religioso, a razão não medra. Terreno fértil para os lances dos estelionatários da fé. Seara propícia à exploração da ignorância e credulidade do povo. A história registra falsidades materiais e ideológicas em documentos (manuscritos, textos impressos). Disto, as escrituras “sagradas” são exemplos notórios. Na Europa, século XVII (1601-1700), panfletos anunciavam o renascimento das antigas escolas de mistérios. Tratava-se de pura invenção. A brincadeira foi levada a sério e deu origem a organizações secretas. No século XX (1901-2000) circularam livros sobre ocultismo de autoria de um escritor chamado Lobsang Rampa. Apesar de escrever em inglês, ele se apresentava como tibetano portador de raros conhecimentos adquiridos em mosteiro do Tibete. Ganhou muito dinheiro. No final do século, salvo engano, noticiou-se que o escritor era britânico e nunca estivera no Tibete. O escritor usou pseudônimo. Afirmava que furou a testa com o objetivo de expandir a visão do “terceiro olho”, o que possibilitou a imersão da sua consciência no mundo espiritual trazendo-lhe extraordinário conhecimento. Certamente, leitor crédulo que tentasse imitar tal experiência poderia sofrer grave dano.
As cartas separam o Cristo (alma) do Jesus (corpo). Quem fala com a desconhecida autora inglesa (que se intitula “canal”) é o Cristo e não o Jesus. Nesse tipo de literatura é comum impregnar as palavras de esoterismo e mistério, usar moldura punitiva e empregar tom ameaçador a quem não segue os mandamentos. Aposta-se no medo e na ignorância das pessoas. Tenta-se impressionar e convencer. As cartas estabelecem código de conduta que entendem necessário às boas relações e à purificação das pessoas. Os princípios que o código menciona, sem originalidade alguma, podem ser encontrados nas doutrinas de Aquenaton, Krishna, Zaratustra, Lao-Tse, Confúcio, Buda, Kut-Hu-Mi e outros grandes mestres e filósofos antigos e modernos, conhecimento que integra o acervo cultural de respeitáveis instituições como, por exemplo, a Ordem Rosacruz (AMORC).
As cartas partem dos seguintes pressupostos: 1. Existiu real e historicamente – não apenas simbolicamente – há dois mil anos, na Palestina, o profeta de nome Jesus, apelidado Cristo; 2. Existe um mundo espiritual de alta frequência vibratória onde vivem espíritos de luz – entre eles, o Cristo – que se comunicam com as pessoas da Terra; 3. Os espíritos de baixa frequência encarnam e reencarnam para atingir níveis superiores, num processo evolutivo (Lamarck + Darwin = ciência; Hinduísmo + Kardec = religião); 4. A humanidade vive em estado de impureza, conflito e sofrimento, consequência das suas crenças, ideias e ações errôneas; 5. Os humanos ignoram a verdade transcendental da existência; 6. Os ensinamentos das religiões estão equivocados; 7. A ciência não alcança a verdade do ser; 8. A fé supera a razão.  
As cartas versam a história de Jesus na Palestina, os dias no deserto, a última ceia, crucifixão, ressurreição, ascensão, diferentes níveis de consciência, o reino dos céus, a verdade do ser e da existência. Abordam questões individuais e sociais, tais como: leis da existência, bem-aventurança, conhecimento de si mesmo, ego (considerado a fonte de toda atividade cruel, mentirosa e pervertida), sexualidade, racismo, autoestima, coragem, alegria, paz interior, amor incondicional. 
O autor espiritual das cartas chama a si próprio de Cristo. Admitindo-se, ad argumentandum, a real e histórica existência de Jesus e alguma verdade nos evangelhos, verifica-se que ele nunca chamou a si mesmo de “cristo”. Trata-se de alcunha dada por terceiros. Enquanto vivo, segundo os evangelhos, ele era tratado de rabi (mestre). Quando se referia a si próprio, ele dizia ser filho do homem e também citava o pai celestial. 
Cristo significa “ungido”. Embora adjetivo, esse vocábulo aplica-se como substantivo a quem é consagrado rei, profeta, grande mestre e também a todo aquele que se ungiu com óleos em cerimônia sagrada, o que lembra o simbólico episódio em Betânia, na casa de Simão, quando mulher derrama bálsamo sobre Jesus, narrado nos evangelhos de Marcos (14: 3-9), Mateus (26: 6-13) e João (12: 1-8).
Ninguém trata a si mesmo de cristo, ungido, iluminado, salvo o mistificador. Para revestir de autoridade e veracidade as suas ideias e opiniões, a inominada autora inglesa usou Cristo nas cartas. Apoiada nesse artificio, ela critica as religiões institucionalizadas, o materialismo da ciência, a ignorância dos cientistas sobre a fonte das energias fundamentais (eletricidade e magnetismo), as trevas em que vive a humanidade. 
Melhor exposição da doutrina e da moral cristãs encontra-se na “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis, cônego holandês da Ordem de Santo Agostinho, obra com tintas eclesiásticas composta de manuscritos do século XV (1401-1500) organizados em quatro livros reunidos num só volume: 1. Avisos Úteis para a Vida Espiritual; 2. Exortações à Vida Interior 3. Da Consolação Interior; 4. Do Sacramento do Altar.  
A interpretação dos ensinamentos de Jesus contida nas cartas discrepa das mensagens do Novo Testamento (parte cristã da Bíblia). Nesse mister, a desconhecida autora inglesa valeu-se, provavelmente, da filosofia perene do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), do conhecimento esotérico oriental e do conhecimento científico ocidental. Trechos das aludidas cartas também coincidem com a versão inglesa do livro “O Evangelho da Irmandade” publicado com o título The Fraternity´s Gospel [Antonio S Lima, Canadá, copyright 1042693, novembro, 2006; EUA, iUniverse-Indigo, ISBN 978-0595-42288-3 (em papel) e 978-0595-86625-0 (eletrônico), agosto, 2007].  
As cartas dizem que: [i] chega-se à fonte do ser (deus) através dos ensinamentos nelas expostos [2] o domínio e a prática deste saber conduzem à consciência crística [3] a humanidade alcançará felicidade e paz quando estiver harmonizada com o amor divino. A consciência é tratada como se fosse substância. Convém advertir, entretanto, que consciência é função dos seres vivos relativa à percepção e à cognição. Acredita-se que, nos humanos, essa função não se limita à dimensão material e se estende à dimensão espiritual do universo. Inclui qualidade moral do sujeito, noção do bem e do mal, do certo e do errado, do lícito e do ilícito; senso do dever e da virtude (honestidade, veracidade, justiça, escrúpulo, compaixão, piedade).
Inobstante a sua duvidosa origem, as cartas indicam, mais uma vez, entre tantas evidências do passado e do presente, que os humanos, em matéria de espiritualidade, ainda estão na Idade da Pedra, apesar do prodigioso avanço científico e tecnológico na Idade Contemporânea.

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