sábado, 20 de fevereiro de 2016

STF: NOVO RUMO VELHO



Na sessão de 05 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF), interpretando a Constituição da República, por maioria dos seus membros, decidiu que o condenado só pode ser preso depois de a sentença condenatória transitar em julgado. Essa decisão beneficiou Daniel Dantas.
Na sessão de 17 de fevereiro de 2016, o STF, interpretando a Constituição da República, por maioria dos seus membros, decidiu que o condenado pode ser preso antes do trânsito em julgado. Essa decisão não beneficiou Márcio Dantas.
Doravante, o condenado à pena de prisão não mais poderá recorrer aos tribunais superiores em liberdade. Durante o processo judicial, ao réu é facultado defender-se amplamente, provas são produzidas, debates são realizados, tudo sob a direção do magistrado. Se após o devido processo jurídico, o réu for condenado pelo juiz e a sentença for confirmada pelo tribunal, não há mais falar em presunção de inocência. A partir do acórdão (sentença do tribunal), há uma certeza provisória. O nome do réu somente será lançado no rol dos culpados depois do trânsito em julgado da sentença, quando a certeza jurisdicional torna-se definitiva.  
Oportuno transcrever trechos do artigo “Liberdade para os Condenados”, publicado neste blog em 09/02/2009, sobre aquela primeira decisão do STF. 
A nova orientação apoiou-se no enunciado constitucional que presume a inocência do réu: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF 5º, LVII). Diante disso, juízes e tribunais não mais poderão expedir ordem de prisão contra os condenados até que a sentença transite em julgado, o que pode demorar muitos anos e propiciar a prescrição da pena aplicada. Impunidade garantida. Antes dessa infeliz e nociva decisão, a sentença penal recorrível produzia dois efeitos principais: a imediata prisão do réu e o lançamento do seu nome no rol dos culpados, consoante os incisos I e II, do artigo 393, do Código de Processo Penal (CPP). (...) O entendimento de que o mencionado preceito constitucional impede a prisão do condenado afigura-se exagero prejudicial à segurança da sociedade e ao poder jurisdicional dos juízes e tribunais. (...) Presunção significa opinião incerta, conjectura sobre a verdade de algo até prova em contrário. Quando essa prova é realizada sob a tutela jurisdicional, a presunção cede lugar à certeza decorrente do contraditório e da ampla defesa. (...) O artigo 393 do CPP, que vigorou por 67 anos e 4 meses (outubro de 1941 a fevereiro de 2009) e que havia se incorporado à doutrina e à jurisprudência, passa de compatível a incompatível com a Constituição de 1988. Só depois de 20 anos de vigência da Constituição é que a maioria do STF considerou inconstitucional aquele dispositivo legal, estimulada pelo episódio Daniel Dantas. (...) Os votos vencedores mantiveram coerência com a escandalosa decisão proferida no habeas corpus que favoreceu Dantas. O STF tirou dos juízes e tribunais o poder de mandar prender os condenados imediatamente, o que tipifica uma capitis deminutio. A decisão do STF abre ensejo à liberdade de todos os condenados que ainda não tiveram sentença penal transitada em julgado. (...) Eis aí a contradição contida na decisão da maioria dos ministros. Se o juiz pode o mais (decretar a prisão mesmo antes de instaurado o processo criminal) pode o menos (decretá-la após encerrada a instrução criminal). A contradição faz transparecer o conteúdo político da decisão: prestigiar o presidente do STF no episódio Dantas; assegurar a liberdade de Dantas.
Com a decisão de 2016, o STF restaurou o que havia quebrado. De forma sensata e realista, interpretou a Constituição em sintonia com o interesse público e com os anseios da nação brasileira. Ciência e consciência harmonizadas. 
Apesar disto, o STF manteve inaplicáveis os artigos 393 e 594 do CPP no primeiro grau de jurisdição. Isto significa a derrogação (modificação parcial) de uma lei por via judicial. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe que a lei vigora até que outra lei a modifique ou a revogue (DL 4.657/1942, 2º; LC 95/1998, 9º, 12). Compete ao Legislativo – e não ao Judiciário – a elaboração da lei. A via judicial é própria para interpretar a lei, mas não para modificá-la ou revogá-la. Ao legislar, o Judiciário viola o princípio da separação dos poderes, salvo quando o faz para o caso concreto, através do mandado de injunção, diante de uma legislação lacunosa. Quando declarada inconstitucional pelo Judiciário, a norma é excluída do ordenamento jurídico. Da decisão do STF, contudo, verifica-se que a norma processual (CPP 393 + 594) permanece válida para a sentença de segundo grau (acórdão); logo, essa norma não colide com a Constituição.
As garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, do devido processo legal, proporcionam certeza jurídica à sentença judicial. Daí, a citada norma processual estabelecer dois efeitos à sentença condenatória recorrível [não transitada em julgado]: (i) ser o réu preso ou conservado na prisão e (ii) ser o seu nome lançado no rol dos culpados. Essa norma que vigorou por sete décadas (1941/2009) servia de limite à presunção de inocência. Agora, o STF repristinou-a (17/02/2016).  
O enunciado constitucional “ninguém será considerado culpado” significa, na sua literalidade, que o indivíduo declarado culpado na sentença judicial não deve ser considerado culpado. Por meio da construção jurisprudencial, o STF afastou essa absurda incongruência, recolocando limite jurídico à presunção de inocência. 
Axioma da ciência jurídica ocidental, a presunção de inocência está contemplada na Magna Charta Libertatum, (Inglaterra, 1215): Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país. A declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão de 1789 especificou-a: Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948, também a consagrou: Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
Nenhum desses históricos documentos exige o trânsito em julgado da sentença. A presunção de inocência encontra o seu limite na sentença judicial. O STF devolveu aos tribunais a autoridade jurisdicional plena. Quanto aos juízes singulares, as sentenças ficam desprovidas daqueles imediatos efeitos. O juiz condena, mas para prender o condenado, deve aguardar a decisão confirmatória do tribunal. Se não aguardar, estará submetendo o condenado a um constrangimento não autorizado pela nova jurisprudência. O condenado em primeiro grau tem o direito de apelar em liberdade.

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