O vocábulo “verdade”, usado
pelo profeta, tem evidente conotação simbólica. Verdade era o que Jesus encarnava: o conteúdo do seu pensamento formalizado
nas suas palavras e refletido na sua conduta. No contexto da sua pregação, verdade é tudo que provém do Pai
Celestial (sabedoria divina) e revelado
ao ser humano. O encarnado que se dizia filho, simbolizava a verdade do Pai Celestial.
A
pergunta de Pôncio Pilatos (o que é verdade?), só mencionada por João, provavelmente
é produto da imaginação e fantasia do narrador, como quase tudo na Bíblia. Não
houve testemunha dessa conversa. Os judeus não entraram no pretório para não se
contaminarem. Livres de contaminação, eles podiam celebrar a páscoa (Jo 18:
28). No interior do pretório, Pilatos interrogou Jesus. Depois, saiu do
pretório e se dirigiu aos judeus. Portanto, além de Pilatos e de Jesus, a narrativa
não aponta a presença do apóstolo narrador e nem de qualquer outra pessoa no
interior do pretório naquele especial momento.
Todavia,
supondo-se que a tal pergunta existiu, cabem duas hipóteses. Primeira: A
pergunta foi meramente retórica. Expressava ceticismo. Pilatos formulou-a, deu
as costas ao interlocutor e saiu sem esperar resposta. Daí, o silêncio de
Jesus. Segunda: A pergunta foi inquisitória. Exigia resposta. Nesta segunda
hipótese, o silêncio de Jesus comporta quatro possíveis interpretações.
(I)
Ele seguiu os seus próprios ensinamentos: “não atirai pérolas aos porcos”. Os
romanos eram politeístas e sem apetite para a filosofia. A resposta entraria
por um ouvido e sairia pelo outro. O profeta silenciou por entender inútil treplicar.
(II)
Ele percebeu o
ridículo da situação e assim pensou: estou
aqui todo ferrado diante dessa populaça sequiosa por fatiar a minha carne e
beber o meu sangue e esse romano aí querendo filosofar sobre a verdade. Esse sujeito deve estar zombando de mim.
Não lhe darei resposta alguma.
(III) Em conseqüência do padecimento
físico e moral que sofria na ocasião, o profeta não teve disposição e nem
palavras adequadas para responder.
(IV) Jesus tinha apenas a intuição da verdade e não o conceito de verdade. A sua doutrina não
exigia a racional definição da verdade. O Jesus do evangelho era um profeta e
não um filósofo. A sua mensagem veio calcada na fé religiosa – não na ciência.
O seu objetivo era domar a face diabólica da natureza humana.
Analogia
mística.
Com a cautelar advertência de
que “nenhuma analogia é perfeita” (Sankara,
filósofo indiano), as crenças e doutrinas religiosas podem ser explicadas
mediante operação analógica. Assim, por exemplo, toma-se a refração da luz
(passagem da luz de um meio para outro) como elemento da comparação. No campo
ótico, utiliza-se um prisma, geralmente com o formato de pirâmide, com
superfícies retas e polidas, sobre o qual se faz incidir luz branca (policromática).
Ao atravessar o prisma, a luz branca se divide em sete raios monocromáticos (espectro
visível). Sob a ótica mística, a cada uma das sete cores corresponde uma
virtude: poder, vitalidade, sabedoria, beleza, bondade, santidade, amor. A luz
branca é comparada à luz divina e o prisma, à mente humana. Ao passar do mundo
espiritual para o mundo material, atravessando o prisma humano, a luz divina
produz diferentes raios monocromáticos,
ou seja, idéias radicais captadas segundo o grau de compreensão de cada
indivíduo. Cada raio monocromático, ou
seja, cada idéia dominante alicerça alguma teoria ou alguma doutrina e se
ramifica. Os teóricos e os doutrinadores combinam idéias básicas e criam
sistemas, uns abertos e outros, dogmáticos. Nas relações sociais, a conduta de
cada pessoa será mais ativa ou mais passiva de acordo com aquela compreensão, com
o seu temperamento e com as circunstâncias. “Eu sou eu e as minhas
circunstâncias” (José Ortega y Gasset).
A crença comum na realidade
absoluta da divindade, na sabedoria e no amor divinos, aproxima as religiões. A
partir daí, elas se afastam umas das outras impulsionadas por seus dogmas sobre:
[1] idéia de deus (substância, forma); [2] modo de cultuá-lo (rituais); [3] interpretação
das leis divinas e naturais (pecado, salvação, condenação); [4] estrutura e
funcionamento do mundo espiritual (seres angelicais, hierarquia celestial, relação
com o mundo natural); [5] idéia de alma e seus atributos (etérea, eterna, individual,
cósmica, inteligente). Cada pessoa, cada igreja, cada instituição, acha-se
possuidora da divina verdade. No
entanto, nenhuma delas a possui na sua plenitude. O arrolamento das virtudes
divinas resulta mais da imaginação e das aspirações humanas do que da sublime realidade.
A régua humana é insuficiente para medir a intenção, a extensão e a substância de
deus.
“Enganador é falar de diferentes religiões, pois estas são apenas diferentes aproximações simbólicas da única verdade religiosa e filosófica a respeito da divindade como realidade absoluta” (Radhakrishnam, filósofo indiano). “A tradição bíblica é uma mitologia socialmente orientada” (Joseph Campbell). “A religião é a realização fantasmagórica da essência humana, porque a essência humana não tem realidade verdadeira” (Karl Marx).
Na mais conhecida filosofia indiana (Advaita Vedânta), não se nota ênfase no
problema da verdade, salvo o dever moral de não mentir. Isto porque, segundo
essa escola, o que o homem considera real (pessoas, coisas, universo, deus) faz
parte do mundo de aparências; tudo é maya
(ilusão, criação mágica); nada é real, salvo Brahman, ser unitário, íntegro e inefável. Segundo as escrituras
védicas (Índia), Brahman é a verdade
absoluta, fonte do real e verdadeiro conhecimento. Krishna é a encarnação de deus, personalidade histórica que viveu
125 anos em nosso planeta e transmitiu os ensinamentos védicos que existem há
cinco mil anos.
Verdade profana.
A busca da verdade
pelos caminhos da arte, da ciência, da filosofia, da religião e do misticismo,
deve-se à curiosidade humana, à ânsia de saber, à vontade de compreender,
explicar e crer, combinadas com a capacidade humana de observar, analisar, sintetizar,
refletir, orar e meditar. Por esses caminhos, trilham o racional e o irracional;
a intuição desafia a razão; a imaginação desafia a realidade; aquilo no que se
crê desafia aquilo que é; o dever-ser desafia o ser.
Na civilização ocidental, a relação entre a
inteligência humana de um lado e os fenômenos naturais e os fatos sociais de
outro, tornou-se um complicado problema. Criou-se toda uma epistemologia com
diferentes teorias sobre o conhecimento humano. A verdade virou mito, algo
volátil e enigmático, fora do imediato alcance do entendimento humano. Os mitos são metáforas da potencialidade
espiritual do ser humano (Joseph Campbell). O objetivo do mito é fornecer
um modelo lógico para resolver uma contradição (Claude Lévi-Strauss). Verdade é uma correta união ou separação de
sinais e o modo pelos quais as coisas significadas por eles concordam ou
discordam entre si (John Locke).
Do ponto de vista lógico, verdade consiste na conformidade do pensamento com o ser (verdade material) ou do pensamento consigo
mesmo (verdade formal). A verdade é produto da razão humana. Do ponto de vista ontológico,
verdade é o espetáculo do mundo
percebido pelos sentidos e refletido na mente do homem. Verdade fundamental no
plano da natureza. Cada ser (mineral,
vegetal, animal) é o que é ainda que
a sua essência seja ignorada pelo homem. Vidro é vidro, ainda que visto e
recebido como diamante. Do ponto de vista psicológico, verdade consiste em tudo o que se
conforma com a concepção de mundo do indivíduo; cada pessoa detém a verdade acerca
de si mesma, do outro, da sociedade, do universo e de deus. Do ponto de vista sociológico,
verdade consiste nas efetivas e
comprovadas relações estabelecidas entre os indivíduos ou entre grupos humanos
no curso da história. Do ponto de vista teleológico, verdade é a exata correspondência das
coisas com os seus úteis ou necessários fins. Do ponto de vista teológico,
verdade é a refulgência de deus no
mundo.
Na esfera humana, verdade
não é algo uniforme e substancial que exista abstrata, perene e isoladamente. Parafraseando
o poeta no seu refinado humor (entre os amantes, “o amor é eterno enquanto
dura”), pode-se dizer que entre os homens a
verdade é absoluta enquanto dura. A verdade provém de um tipo de relação
estabelecida entre a percepção e a inteligência do sujeito de um lado, e o
objeto observado, de outro. O objeto observado pode ser deus, a natureza, a
sociedade, pessoas ou o próprio sujeito (introspecção). A verdade é problema ético e lógico que decorre da sociabilidade e da
racionalidade do ser humano.
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