sábado, 21 de novembro de 2015

TOLERÂNCIA E VERDADE II



O vocábulo “verdade”, usado pelo profeta, tem evidente conotação simbólica. Verdade era o que Jesus encarnava: o conteúdo do seu pensamento formalizado nas suas palavras e refletido na sua conduta. No contexto da sua pregação, verdade é tudo que provém do Pai Celestial (sabedoria divina) e revelado ao ser humano. O encarnado que se dizia filho, simbolizava a verdade do Pai Celestial.

A pergunta de Pôncio Pilatos (o que é verdade?), só mencionada por João, provavelmente é produto da imaginação e fantasia do narrador, como quase tudo na Bíblia. Não houve testemunha dessa conversa. Os judeus não entraram no pretório para não se contaminarem. Livres de contaminação, eles podiam celebrar a páscoa (Jo 18: 28). No interior do pretório, Pilatos interrogou Jesus. Depois, saiu do pretório e se dirigiu aos judeus. Portanto, além de Pilatos e de Jesus, a narrativa não aponta a presença do apóstolo narrador e nem de qualquer outra pessoa no interior do pretório naquele especial momento.

Todavia, supondo-se que a tal pergunta existiu, cabem duas hipóteses. Primeira: A pergunta foi meramente retórica. Expressava ceticismo. Pilatos formulou-a, deu as costas ao interlocutor e saiu sem esperar resposta. Daí, o silêncio de Jesus. Segunda: A pergunta foi inquisitória. Exigia resposta. Nesta segunda hipótese, o silêncio de Jesus comporta quatro possíveis interpretações.
(I) Ele seguiu os seus próprios ensinamentos: “não atirai pérolas aos porcos”. Os romanos eram politeístas e sem apetite para a filosofia. A resposta entraria por um ouvido e sairia pelo outro. O profeta silenciou por entender inútil treplicar.
(II) Ele percebeu o ridículo da situação e assim pensou: estou aqui todo ferrado diante dessa populaça sequiosa por fatiar a minha carne e beber o meu sangue e esse romano aí querendo filosofar sobre a verdade. Esse sujeito deve estar zombando de mim. Não lhe darei resposta alguma.
(III) Em conseqüência do padecimento físico e moral que sofria na ocasião, o profeta não teve disposição e nem palavras adequadas para responder.
(IV) Jesus tinha apenas a intuição da verdade e não o conceito de verdade. A sua doutrina não exigia a racional definição da verdade. O Jesus do evangelho era um profeta e não um filósofo. A sua mensagem veio calcada na fé religiosa – não na ciência. O seu objetivo era domar a face diabólica da natureza humana.  

Analogia mística.

Com a cautelar advertência de que “nenhuma analogia é perfeita” (Sankara, filósofo indiano), as crenças e doutrinas religiosas podem ser explicadas mediante operação analógica. Assim, por exemplo, toma-se a refração da luz (passagem da luz de um meio para outro) como elemento da comparação. No campo ótico, utiliza-se um prisma, geralmente com o formato de pirâmide, com superfícies retas e polidas, sobre o qual se faz incidir luz branca (policromática). Ao atravessar o prisma, a luz branca se divide em sete raios monocromáticos (espectro visível). Sob a ótica mística, a cada uma das sete cores corresponde uma virtude: poder, vitalidade, sabedoria, beleza, bondade, santidade, amor. A luz branca é comparada à luz divina e o prisma, à mente humana. Ao passar do mundo espiritual para o mundo material, atravessando o prisma humano, a luz divina produz diferentes raios monocromáticos, ou seja, idéias radicais captadas segundo o grau de compreensão de cada indivíduo. Cada raio monocromático, ou seja, cada idéia dominante alicerça alguma teoria ou alguma doutrina e se ramifica. Os teóricos e os doutrinadores combinam idéias básicas e criam sistemas, uns abertos e outros, dogmáticos. Nas relações sociais, a conduta de cada pessoa será mais ativa ou mais passiva de acordo com aquela compreensão, com o seu temperamento e com as circunstâncias. “Eu sou eu e as minhas circunstâncias” (José Ortega y Gasset).   

A crença comum na realidade absoluta da divindade, na sabedoria e no amor divinos, aproxima as religiões. A partir daí, elas se afastam umas das outras impulsionadas por seus dogmas sobre: [1] idéia de deus (substância, forma); [2] modo de cultuá-lo (rituais); [3] interpretação das leis divinas e naturais (pecado, salvação, condenação); [4] estrutura e funcionamento do mundo espiritual (seres angelicais, hierarquia celestial, relação com o mundo natural); [5] idéia de alma e seus atributos (etérea, eterna, individual, cósmica, inteligente). Cada pessoa, cada igreja, cada instituição, acha-se possuidora da divina verdade. No entanto, nenhuma delas a possui na sua plenitude. O arrolamento das virtudes divinas resulta mais da imaginação e das aspirações humanas do que da sublime realidade. A régua humana é insuficiente para medir a intenção, a extensão e a substância de deus.        

“Enganador é falar de diferentes religiões, pois estas são apenas diferentes aproximações simbólicas da única verdade religiosa e filosófica a respeito da divindade como realidade absoluta” (Radhakrishnam, filósofo indiano). “A tradição bíblica é uma mitologia socialmente orientada” (Joseph Campbell). “A religião é a realização fantasmagórica da essência humana, porque a essência humana não tem realidade verdadeira” (Karl Marx).  

Na mais conhecida filosofia indiana (Advaita Vedânta), não se nota ênfase no problema da verdade, salvo o dever moral de não mentir. Isto porque, segundo essa escola, o que o homem considera real (pessoas, coisas, universo, deus) faz parte do mundo de aparências; tudo é maya (ilusão, criação mágica); nada é real, salvo Brahman, ser unitário, íntegro e inefável. Segundo as escrituras védicas (Índia), Brahman é a verdade absoluta, fonte do real e verdadeiro conhecimento. Krishna é a encarnação de deus, personalidade histórica que viveu 125 anos em nosso planeta e transmitiu os ensinamentos védicos que existem há cinco mil anos.          

Verdade profana.

A busca da verdade pelos caminhos da arte, da ciência, da filosofia, da religião e do misticismo, deve-se à curiosidade humana, à ânsia de saber, à vontade de compreender, explicar e crer, combinadas com a capacidade humana de observar, analisar, sintetizar, refletir, orar e meditar. Por esses caminhos, trilham o racional e o irracional; a intuição desafia a razão; a imaginação desafia a realidade; aquilo no que se crê desafia aquilo que é; o dever-ser desafia o ser.

Na civilização ocidental, a relação entre a inteligência humana de um lado e os fenômenos naturais e os fatos sociais de outro, tornou-se um complicado problema. Criou-se toda uma epistemologia com diferentes teorias sobre o conhecimento humano. A verdade virou mito, algo volátil e enigmático, fora do imediato alcance do entendimento humano. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano (Joseph Campbell). O objetivo do mito é fornecer um modelo lógico para resolver uma contradição (Claude Lévi-Strauss). Verdade é uma correta união ou separação de sinais e o modo pelos quais as coisas significadas por eles concordam ou discordam entre si (John Locke).

Do ponto de vista lógico, verdade consiste na conformidade do pensamento com o ser (verdade material) ou do pensamento consigo mesmo (verdade formal). A verdade é produto da razão humana. Do ponto de vista ontológico, verdade é o espetáculo do mundo percebido pelos sentidos e refletido na mente do homem. Verdade fundamental no plano da natureza. Cada ser (mineral, vegetal, animal) é o que é ainda que a sua essência seja ignorada pelo homem. Vidro é vidro, ainda que visto e recebido como diamante. Do ponto de vista psicológico, verdade consiste em tudo o que se conforma com a concepção de mundo do indivíduo; cada pessoa detém a verdade acerca de si mesma, do outro, da sociedade, do universo e de deus. Do ponto de vista sociológico, verdade consiste nas efetivas e comprovadas relações estabelecidas entre os indivíduos ou entre grupos humanos no curso da história. Do ponto de vista teleológico, verdade é a exata correspondência das coisas com os seus úteis ou necessários fins. Do ponto de vista teológico, verdade é a refulgência de deus no mundo.

Na esfera humana, verdade não é algo uniforme e substancial que exista abstrata, perene e isoladamente. Parafraseando o poeta no seu refinado humor (entre os amantes, “o amor é eterno enquanto dura”), pode-se dizer que entre os homens a verdade é absoluta enquanto dura. A verdade provém de um tipo de relação estabelecida entre a percepção e a inteligência do sujeito de um lado, e o objeto observado, de outro. O objeto observado pode ser deus, a natureza, a sociedade, pessoas ou o próprio sujeito (introspecção). A verdade é problema ético e lógico que decorre da sociabilidade e da racionalidade do ser humano.

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