domingo, 6 de setembro de 2015

TEORIA E PRÁTICA



Na sessão do dia 02/09/2015, do Supremo Tribunal Federal (STF), estava em julgamento recurso extraordinário cuja origem era um mandado de segurança interposto por funcionários contra a administração pública. Os impetrantes tiveram cortados os seus pontos em decorrência de greve no serviço público. Os dias parados foram descontados dos seus vencimentos. Eles sustentavam o desamparo jurídico da decisão do administrador que ordenou o desconto. Venceram a demanda no grau ordinário de jurisdição. A entidade pública interpôs recurso extraordinário. O STF reconheceu a repercussão geral da matéria, ou seja: o tribunal entendeu: (1) relevante a questão do ponto de vista social e jurídico (2) que a demanda ultrapassava os interesses subjetivos dos litigantes.



Antes de examinar o mérito do recurso, o tribunal enfrentou a seguinte questão de ordem: prejuízo do recurso ante a desistência da ação apresentada pelos impetrantes do mandado de segurança. A desistência ocorrera porque o administrador público, após o processamento da ação, pagou os dias parados durante a greve. Destarte, a demanda perdera o seu objeto. Em conseqüência, não havendo mais interesse processual e havendo desistência da ação, o processo devia ser extinto sem resolução do mérito, na forma da lei processual em vigor. A questão ocupou a tarde inteira e ainda prosseguirá em futura sessão, porque um dos ministros pediu vista dos autos do processo.



A discussão teórica ofuscou o aspecto prático da questão. Isto acontece com freqüência no STF e contribui para a demora na solução das demandas. Os ministros confundem erudição com cultura e proferem votos extensos, como se fossem monografias e livros acadêmicos, repletos de citações de doutrina nacional e estrangeira e de dezenas de julgados, em linguagem rebuscada e com muitas repetições. Eles pouco oferecem de si mesmos, do pensamento lavrado na experiência e no bom senso; evitam estabelecer, mediante o seu próprio raciocínio e com olhos postos no caso sub judice, os nexos entre princípios e normas do sistema jurídico. A maioria dos ministros é, ou foi, professor universitário. Paralelamente à judicatura, alguns deles produzem textos doutrinários e livros, o que representa ganhos oriundos dos direitos autorais e das palestras que a toga prestigia e favorece. De um modo geral, os ministros também confundem magistério com magistratura ao exercerem a função judicante. Sabem a diferença, pois conhecimento não lhes falta, porém não sabem moderar a doutrinação e as citações, pois, se soubessem, concentrar-se-iam mais nos aspectos práticos da controvérsia em busca da solução conforme o direito em vigor no Brasil.



Exato e percuciente exame de qualquer caso deve preceder à sua explicação e interpretação. Memorável decisão de poucas páginas, proferida pela Suprema Corte dos EUA, sem invocação de doutrina e jurisprudência, repercutiu no mundo e se integrou ao direito constitucional, alicerçada na lógica, na interpretação sistemática e na autoridade moral e intelectual dos seus juízes (caso Marbury x Madison, 1808). Nessa decisão, a Suprema Corte firmou: (1) o princípio da supremacia da Constituição escrita em face das leis ordinárias; (2) a competência dos tribunais para, no devido processo legal, examinar e declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis. Essa doutrina fora exposta anteriormente por Hamilton no Federalista, coleção de artigos publicados na imprensa, da lavra dele, de Madison e de Jay, em defesa da Constituição dos EUA.         



Gilmar Mendes censurou um ministro por emitir opinião. Segundo o rabugento censor, “opinião se dá em livro”; ou seja: no processo judicial não cabe ao juiz opinar e sim julgar. No entanto, Gilmar emite opiniões nas sessões do tribunal seguidamente e o faz, muitas vezes, interrompendo o colega que está com a palavra sem pedir aparte, violando o regimento e a ética judiciária. O irascível censor gosta de impor o seu entendimento sobre todas as questões e mostra desagrado e irritação com opiniões contrárias. Outrossim, julgar significa formular juízos sobre coisas, pessoas e relações. Opinar significa formular juízos sobre coisas, pessoas e relações. Logo, opinar é um modo de julgar. A censura caberia sob outra luz: o hábito dos ministros de se valerem do processo judicial para dar vazão aos seus pendores literários e magisteriais, em prejuízo da concisão e da objetividade. “Vaidade, tudo é vaidade”, dizia Salomão, o rei hebreu que rogava a deus, a graça de ser um bom juiz.   



Além de indelicada, a censura do ministro foi obtusa. A opinião do juiz integra a prestação da tutela jurisdicional. Nos tribunais, a divergência sobre o mesmo assunto é comum; há votos convergentes e votos divergentes; ou seja: opiniões contrárias sobre a matéria em julgamento. A decisão judicial se compõe: (I) do relato sobre: (i) a pretensão do requerente; (ii) a resistência do requerido; (iii) as principais ocorrências; (II) da análise das questões de fato e de direito trazidas pelas partes; (III) da resolução dessas questões. Ao fundamentar a decisão, baseado no seu conhecimento, na sua experiência, na sua convicção e na sua consciência, o julgador emite opinião sobre: (1) a tese do requerente e a antítese do requerido; (2) a idoneidade da prova produzida na instrução processual; (3) a lei aplicável ao caso. 



A partir da fundamentação, geralmente encorpada com citações de jurisprudência e doutrina, às vezes com exagero, o juiz lança o dispositivo da decisão (nos tribunais, a decisão recebe o nome de acórdão). Tal decisão representa certeza processual baseada na evidência extraída do que ficou provado nos autos do processo. Nem sempre a certeza processual corresponde ao que acontece ou aconteceu fora do tribunal. Enquanto a solução da ação originária ou da respectiva ação rescisória não transitar em julgado, a certeza processual poderá ser alterada. Em outras palavras: enquanto for passível de recurso, a decisão reflete a opinião do prolator (juízo singular ou juízo colegiado) e somente se converte em certeza judicial após o trânsito em julgado (depois de esgotadas as instâncias recursais).        



A opinião e a certeza são dois estados em que se coloca o entendimento humano perante o problema da verdade. Na opinião, ao expor suas razões, o sujeito não afasta a possibilidade da concorrência de razões contrárias. A opinião assenta-se no convencimento do sujeito de que a maior probabilidade está ao lado das suas razões e não ao lado das razões opostas. Na certeza, ao expor suas razões, o sujeito não deixa margem a razões contrárias e não admite equívoco. A verdade brota da evidência (intuitiva ou racional), da clareza e firmeza com que o objeto se apresenta à consciência do sujeito (o que não afasta a cautela com a evidência aparente, superficial). A verdade pode ser: (1) ontológica, segundo o princípio da identidade: o que é, é; a verdade nesse caso é a expressão do ser das coisas tais como elas se apresentam no seu existir; (2) materialmente lógica: consiste na concordância do conteúdo do pensamento com o objeto; (3) formalmente lógica: consiste na concordância do pensamento consigo mesmo (coerência, ausência de contradição).



No caso examinado na referida sessão, o STF elaborou a tese de que, uma vez reconhecida repercussão geral, a parte não pode mais desistir da ação. A prestação da tutela jurisdicional escapa ao interesse subjetivo das partes e passa a interessar objetivamente à coletividade. Destarte, o STF julga a ação contra a vontade das partes, ainda que não haja mais interesse ou mesmo quando perdido o seu objeto. Essa tese parece violar: (1) a liberdade das pessoas para dispor dos seus bens, direitos e interesses; (2) o preceito que proíbe o juiz ou tribunal de prestar a tutela jurisdicional sem que a parte o requeira.



Havia solução prática para o caso, menos onerosa para a lógica jurídica, sem necessidade da ginástica cerebrina. O viés da lucubração acadêmica tem esse efeito de empalidecer o bom senso e de distanciar o pensador do contacto com realidades menos complexas. (Conta-se que Einstein se embaraçava com o troco nas compras de varejo que fazia no mercado). O presidente do STF declarou que havia recursos sobre idêntica controvérsia sobrestados nos tribunais. Bastava, então, o STF, na forma da lei, extinguir aquele processo e determinar a subida de um ou dois dentre os recursos sobrestados. O reconhecimento da repercussão geral seria mantido e o tribunal daria a solução esperada. Aliás, bom alvitre será a prática de manter no STF dois recursos representativos da mesma controvérsia para o caso de qualquer deles ser extinto sem resolução do mérito. A vigente processualística autoriza o tribunal de origem a encaminhar ao STF um ou mais recursos representativos.          


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