Na sessão do dia 02/09/2015, do Supremo Tribunal
Federal (STF), estava em julgamento recurso extraordinário cuja origem era um
mandado de segurança interposto por funcionários contra a administração
pública. Os impetrantes tiveram cortados os seus pontos em decorrência de greve
no serviço público. Os dias parados foram descontados dos seus vencimentos.
Eles sustentavam o desamparo jurídico da decisão do administrador que ordenou o
desconto. Venceram a demanda no grau ordinário de jurisdição. A entidade
pública interpôs recurso extraordinário. O STF reconheceu a repercussão geral da matéria, ou seja: o
tribunal entendeu: (1) relevante a questão do ponto de vista social e jurídico (2) que a demanda ultrapassava os interesses subjetivos dos litigantes.
Antes de examinar o mérito do recurso, o tribunal
enfrentou a seguinte questão de ordem: prejuízo
do recurso ante a desistência da ação apresentada pelos impetrantes do mandado
de segurança. A desistência ocorrera porque o administrador público, após o
processamento da ação, pagou os dias parados durante a greve. Destarte, a
demanda perdera o seu objeto. Em conseqüência, não havendo mais interesse
processual e havendo desistência da ação, o processo devia ser extinto sem
resolução do mérito, na forma da lei processual em vigor. A questão ocupou a
tarde inteira e ainda prosseguirá em futura sessão, porque um dos ministros
pediu vista dos autos do processo.
A discussão teórica ofuscou o aspecto prático da
questão. Isto acontece com freqüência no STF e contribui para a demora na
solução das demandas. Os ministros confundem erudição com cultura e proferem
votos extensos, como se fossem monografias e livros acadêmicos, repletos de
citações de doutrina nacional e estrangeira e de dezenas de julgados, em
linguagem rebuscada e com muitas repetições. Eles pouco oferecem de si mesmos,
do pensamento lavrado na experiência e no bom senso; evitam estabelecer,
mediante o seu próprio raciocínio e com olhos postos no caso sub judice, os nexos entre princípios e
normas do sistema jurídico. A maioria dos ministros é, ou foi, professor
universitário. Paralelamente à judicatura, alguns deles produzem textos
doutrinários e livros, o que representa ganhos oriundos dos direitos autorais e
das palestras que a toga prestigia e favorece. De um modo geral, os ministros também
confundem magistério com magistratura ao exercerem a função judicante. Sabem a
diferença, pois conhecimento não lhes falta, porém não sabem moderar a
doutrinação e as citações, pois, se soubessem, concentrar-se-iam mais nos
aspectos práticos da controvérsia em busca da solução conforme o direito em
vigor no Brasil.
Exato e percuciente exame de qualquer caso deve
preceder à sua explicação e interpretação. Memorável decisão de poucas páginas, proferida pela Suprema Corte
dos EUA, sem invocação de doutrina e jurisprudência, repercutiu no mundo e se integrou ao direito constitucional,
alicerçada
na lógica, na interpretação sistemática e na autoridade moral e intelectual dos
seus juízes (caso Marbury x Madison, 1808). Nessa decisão, a Suprema Corte
firmou: (1) o princípio da supremacia da Constituição escrita em face das leis
ordinárias; (2) a competência dos tribunais para, no devido processo legal, examinar
e declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis. Essa doutrina
fora exposta anteriormente por Hamilton no Federalista,
coleção de artigos publicados na imprensa, da lavra dele, de Madison e de Jay, em defesa da Constituição dos EUA.
Gilmar Mendes censurou um ministro por emitir opinião.
Segundo o rabugento censor, “opinião se dá em livro”; ou seja: no processo
judicial não cabe ao juiz opinar e sim julgar. No entanto, Gilmar emite
opiniões nas sessões do tribunal seguidamente e o faz, muitas vezes,
interrompendo o colega que está com a palavra sem pedir aparte, violando o
regimento e a ética judiciária. O irascível censor gosta de impor o seu
entendimento sobre todas as questões e mostra desagrado e irritação com
opiniões contrárias. Outrossim, julgar significa formular juízos sobre coisas, pessoas e relações. Opinar significa formular juízos sobre coisas, pessoas e relações. Logo, opinar é um modo de julgar. A censura caberia sob outra luz: o hábito dos ministros de se
valerem do processo judicial para dar vazão aos seus pendores literários e
magisteriais, em prejuízo da concisão e da objetividade. “Vaidade, tudo é
vaidade”, dizia Salomão, o rei hebreu que rogava a deus, a graça de ser um bom
juiz.
Além de indelicada, a censura do ministro foi obtusa.
A opinião do juiz integra a prestação da tutela jurisdicional. Nos tribunais, a
divergência sobre o mesmo assunto é comum; há votos convergentes e votos
divergentes; ou seja: opiniões contrárias sobre a matéria em julgamento. A decisão
judicial se compõe: (I) do relato
sobre: (i) a pretensão do requerente; (ii) a resistência do requerido; (iii) as
principais ocorrências; (II) da
análise das questões de fato e de direito trazidas pelas partes; (III) da resolução dessas questões. Ao
fundamentar a decisão, baseado no seu conhecimento, na sua experiência, na sua
convicção e na sua consciência, o julgador emite opinião sobre: (1) a tese do requerente e a antítese
do requerido; (2) a idoneidade da
prova produzida na instrução processual; (3)
a lei aplicável ao caso.
A partir da fundamentação, geralmente encorpada com
citações de jurisprudência e doutrina, às vezes com exagero, o juiz lança o
dispositivo da decisão (nos tribunais, a decisão recebe o nome de acórdão). Tal decisão representa certeza
processual baseada na evidência extraída do que ficou provado nos autos do
processo. Nem sempre a certeza processual corresponde ao que acontece ou
aconteceu fora do tribunal. Enquanto a solução da ação originária ou da respectiva
ação rescisória não transitar em julgado, a certeza processual poderá ser
alterada. Em outras palavras: enquanto for passível de recurso, a decisão
reflete a opinião do prolator (juízo singular ou juízo colegiado) e somente se
converte em certeza judicial após o trânsito em julgado (depois de esgotadas as
instâncias recursais).
A opinião e
a certeza são dois estados em que se
coloca o entendimento humano perante o problema da verdade. Na opinião, ao expor suas razões, o sujeito
não afasta a possibilidade da concorrência de razões contrárias. A opinião
assenta-se no convencimento do sujeito de que a maior probabilidade está ao
lado das suas razões e não ao lado das razões opostas. Na certeza, ao expor suas razões, o sujeito não deixa margem a razões
contrárias e não admite equívoco. A verdade brota da evidência (intuitiva ou
racional), da clareza e firmeza com que o objeto se apresenta à consciência do
sujeito (o que não afasta a cautela com a evidência aparente, superficial). A
verdade pode ser: (1) ontológica, segundo o princípio da
identidade: o que é, é; a verdade
nesse caso é a expressão do ser das
coisas tais como elas se apresentam no seu existir; (2) materialmente lógica:
consiste na concordância do conteúdo do pensamento com o objeto; (3) formalmente
lógica: consiste na concordância do pensamento consigo mesmo (coerência,
ausência de contradição).
No caso examinado na referida sessão, o STF elaborou a
tese de que, uma vez reconhecida repercussão
geral, a parte não pode mais desistir da ação. A prestação da tutela jurisdicional
escapa ao interesse subjetivo das partes e passa a interessar objetivamente à
coletividade. Destarte, o STF julga a ação contra a vontade das partes, ainda
que não haja mais interesse ou mesmo quando perdido o seu objeto. Essa tese
parece violar: (1) a liberdade das
pessoas para dispor dos seus bens, direitos e interesses; (2) o preceito que proíbe o juiz ou tribunal de prestar a tutela
jurisdicional sem que a parte o requeira.
Havia solução prática para o caso, menos onerosa para
a lógica jurídica, sem necessidade da ginástica cerebrina. O viés da lucubração
acadêmica tem esse efeito de empalidecer o bom senso e de distanciar o pensador
do contacto com realidades menos complexas. (Conta-se que Einstein se
embaraçava com o troco nas compras de varejo que fazia no mercado). O presidente do
STF declarou que havia recursos sobre idêntica controvérsia sobrestados nos
tribunais. Bastava, então, o STF, na forma da lei, extinguir aquele processo e
determinar a subida de um ou dois dentre os recursos sobrestados. O
reconhecimento da repercussão geral
seria mantido e o tribunal daria a solução esperada. Aliás, bom alvitre será a
prática de manter no STF dois recursos representativos da mesma controvérsia
para o caso de qualquer deles ser extinto sem resolução do mérito. A vigente
processualística autoriza o tribunal de origem a encaminhar ao STF um ou
mais recursos representativos.
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