domingo, 2 de março de 2025

DEMOCRACIA GENI

Tal como a Geni da canção do Chico Buarque, a democracia brasileira é maltratada. Nascida de uma operação cesariana em 15 de novembro de 1889, na cidade do Rio de Janeiro, certidão de nascimento lavrada em 24 de fevereiro de 1891, a democracia brasileira teve fraldas trocadas na infância, foi estuprada na adolescência e de colombina vestida na maturidade. Aos 134 anos de idade, foi emancipada. 
Nota-se o paralelo. Em 13 de maio de 1888, princesa da monarquia brasileira chamada Izabel, emancipou os escravos da tutela dos proprietários. Em 8 de janeiro de 2023, primeira-dama da república brasileira chamada Rosângela, emancipou os civis da tutela dos militares. A postura lúcida, firme e corajosa dessa mulher impediu o presidente da república de caír numa arapuca. Os militares já estavam de prontidão. No intuito de garantir a lei e a ordem, eles assumiriam o comando do estado se - estribado no artigo 142 da Constituição - o presidente os convocasse. A atitude da primeira-dama levou o governo civil a usar sua própria energia, inteligência e autoridade, para sufocar aquela rebelião programada para consumar o golpe de estado arquitetado por militares. 
A denúncia criminal apresentada pelo Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal em 18 de fevereiro de 2025, contra Jair Messias Bolsonaro e outros, informa com precisão e robusta prova, os atos e fatos que caracterizaram o golpe tentado e fracassado. 
No curso da vida republicana, sob constrangedora tutela das forças armadas (1889-2023), regimes democráticos e regimes autocráticos se alternaram lastreados ora em constituições votadas por democratas, ora em cartas outorgadas por ditadores. Estas oscilações obscureceram o conceito de democracia na sociedade brasileira. 
A origem da palavra democracia é grega: demo (povo) + cratos (poder). Referido a Atenas, cidade/estado grega, esse poder do povo significava capacidade dos nativos de governar a si próprios dentro do seu território. Povo era a comunidade de pessoas atenienses do sexo masculino e de certa idade, proprietárias de bens, com direito ao sufrágio. No evolver da democracia na Europa, todos os homens livres, alfabetizados, de determinada faixa etária, constituíam o povo, isto é, o corpo eleitoral do estado. Nas democracias europeias e americanas do século XX, as mulheres adquiriram direito ao sufrágio e passaram a integrar o povo no específico sentido político e jurídico de corpo eleitoral, distinto do genérico sentido sociológico e demográfico de nação e população.    
Na república tutelada, os comandantes das forças armadas são os detentores do real e eficaz poder de governar o povo. Militarismo sobrepõe-se a civilismo. Nos negócios de estado, prevalece a vontade dos oficiais militares, coincidente ou não coincidente com a vontade do povo. Diferenças culturais (ideológicas, intelectuais, religiosas, econômicas) na sociedade civil, conspiram contra a pretendida unidade de vontade de seres coletivos como exército e povo. Disto se aproveita o autocrata para se afirmar legitimado pelo consenso de parcela da nação. 
Na Idade Moderna, democracia passou a ser vista com lentes ideológicas tendo por escopo o bem-estar e a segurança das pessoas, bem como, a realização do sonho de paz e felicidade. Nos estados capitalistas, a democracia é liberal; o seu esteio são as ideias de liberdade e de propriedade privada. Nos estados socialistas, a democracia é igualitária; o seu esteio são as ideias de igualdade e de propriedade coletiva. Nos dois modelos de estado, a sede do poder é o povo.  O exercício desse poder se faz em nome do povo. Os representantes do povo são eleitos de forma direta e/ou indireta, conforme as regras do processo eleitoral de cada país soberano. 
A forma de governo nos estados capitalistas e nos estados socialistas mostra-se autocrática quando a liberdade e a igualdade são submetidas a severas restrições conforme o talante dos ditadores. 
No histórico plano dos fatos, não há fidelidade a modelos teóricos. Imperam a necessidade, a utilidade e o interesse. Mas, e a lei? Eis a sarcástica resposta de Napoleão Bonaparte: “A lei? Ora, a lei”. 
A Constituição, no caput do artigo 5º, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à liberdade. Sob os incisos IV e IX, desse artigo, assegura as liberdades: (i) de manifestação do pensamento (ii) de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. 
As garantias constitucionais não amparam o exercício ilícito do direito à liberdade. Os limites traçados pela ordem jurídica devem ser respeitados pelos brasileiros e estrangeiros aqui residentes. O estrangeiro que trabalha no Brasil (indivíduo ou empresa) tem o dever de (i) respeitar a soberania nacional (ii) se enquadrar na lei brasileira (iii) acatar as decisões dos juízes brasileiros proferidas no devido processo legal. 
Impertinente, portanto, a nota expedida pelo departamento de estado dos Estados Unidos, acusando a justiça brasileira de violar a liberdade de expressão e os valores democráticos no caso das Big Tech. Com aquela nota, o governo estadunidense pretende: (i) a impunidade das empresas privadas americanas (ii) defender os valores autocráticos dos nazifascistas nacionais e estrangeiros.
A Constituição, no seu artigo 17, exige dos partidos políticos o resguardo da soberania nacional e do regime democrático. Portanto, violam essa norma constitucional os partidos: (i) que prestam continência a governo estrangeiro em detrimento da soberania nacional (ii) que, no plano dos fatos, caracterizam-se como de extrema direita. 
Ainda que os estatutos do partido declarem amor à democracia, a extrema direita é visceralmente autocrática; a sua mentalidade e a correspondente ação social e política são incompatíveis com as instituições democráticas. Imperiosa, pois, a necessidade de o Tribunal Superior Eleitoral cassar o registro desses ninhos de nazifascistas. Cabe ao Ministério Público apurar a responsabilidade penal das lideranças dos partidos de extrema direita, tendo em vista a continuada ação delituosa deles contra o estado democrático de direito. A Ordem dos Advogados do Brasil e outras organizações civis têm o dever cívico de engajamento nessa luta.

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