quinta-feira, 7 de novembro de 2024

VENEZUELA AGAIN II

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil expediu, no dia 1º de novembro de 2024, nota em defesa dos seus diplomatas e do Presidente da República no caso do veto do governo brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. Diz (a) que o Brasil sempre teve apreço ao princípio da não-intervenção e pleno respeito à soberania dos outros estados (b) que o interesse do Brasil no processo eleitoral da Venezuela, no qual esteve presente como testemunha, decorre do Acordo de Barbados.
O Brasil que a nota menciona é o governo e não o povo brasileiro. Esses dois elementos estruturais do estado nem sempre estão em sintonia. No caso em tela, uma parcela do povo está a favor e outra está contra a decisão do governo de vetar. Mediante plebiscito ou referendo, saber-se-á qual das duas parcelas constitui maioria. 
O trecho da nota sobre o respeito à soberania e a não-intervenção fica bonito no plano dos princípios. Todavia, no plano dos fatos, o governo brasileiro desrespeitou a soberania da Venezuela; intrometeu-se na política doméstica, na disputa entre situação e oposição; extrapolou o seu papel de observador; fez exigências descabidas. Ser testemunha não significa ser parte. Ser observador não significa ser interventor. Às missões estrangeiras mencionadas no Acordo de Barbados cabia unicamente observar o andamento das eleições e, nesse exclusivo mister, transitar pelo território da Venezuela. Nenhum direito foi outorgado aos missioneiros para pressionar, contestar, exigir provas, aplicar sanções, orientar e financiar as partes, estimular golpes de estado. 
O Acordo Parcial Sobre a Promoção de Direitos Políticos e Garantias Para Todos, sinteticamente tratado como Acordo de Barbados, foi celebrado em outubro de 2023, em Barbados, ilha localizada no Oceano Atlântico, a nordeste da Venezuela, território da república parlamentarista independente lá instalada. 
Constam como partes celebrantes: Governo da República Bolivariana da Venezuela, de um lado (situação) e, de outro, Plataforma Unitária da Venezuela (oposição). Só essas partes, e ninguém mais, têm legítimo interesse para questionar o Acordo. Trata-se de res inter alios acta, assunto interna corporis a ser cuidado dentro do sistema jurídico venezuelano. 
O Acordo, no seu exórdio e nas cláusulas terceira, item 5, e sexta: 1. Resguarda a soberania da Venezuela. 2. Assegura o vigor da Constituição e da lei orgânica do processo eleitoral. 3. Prima pela igualdade de meios na campanha eleitoral. 4. Opõe-se a intervenção estrangeira e a qualquer forma de violência política contra a Venezuela, seu estado e suas instituições. 5. Valoriza a democracia inclusiva e a cultura da tolerância e da coexistência pacífica. 
O objetivo do Acordo foi o de disciplinar as eleições venezuelanas do segundo semestre de 2024. Realizadas as eleições, extingue-se o Acordo pela perda de objeto.
O Assessor Especial do Presidente da República Federativa do Brasil compareceu a uma audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados a fim de explicar o veto brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. O veto aconteceu na 16ª Cúpula da BRICS. No seu depoimento, o assessor presidencial afirmou: (i) que o veto resultou do consenso entre os países fundadores do bloco BRICS (ii) que há um mal-estar entre Brasil e Venezuela por causa do processo eleitoral questionado pela comunidade internacional sobre falta de transparência e das atas da votação (iii) que a mediação do Brasil e de outros países estava prevista no Acordo de Barbados celebrado entre os grupos políticos venezuelanos. 
Essa versão do assessor presidencial colide com os fatos. Inexistiu consenso. Houve dissenso. Dos 5 membros fundadores da BRICS, apenas 1 votou contra a admissão da Venezuela. Faltou a unanimidade exigida pela regra da aliança para admitir novos membros. Essa regra talvez seja substituída na próxima Cúpula pela regra da prevalência da vontade da maioria nas decisões colegiadas. Da “comunidade internacional” referida pelo assessor presidencial participam o Brasil, os Estados Unidos e seus satélites. Seja o presidente democrata ou republicano, o governo dos Estados Unidos manterá a sua política hostil à aliança BRICS. Na comunidade internacional de países da BRICS essa matéria não foi questionada. O Presidente da Cúpula, na entrevista coletiva concedida à imprensa no final dos trabalhos, foi claro ao espelhar a vontade da maioria dos votantes: o reconhecimento da legitimidade das eleições e do governo da Venezuela. Essa maioria formada por África do Sul, China, Índia e Rússia, não faz restrição alguma ao ingresso da Venezuela na aliança. 
A “mediação” do Brasil e outros países referida pelo assessor presidencial não consta do Acordo de Barbados. Os países nele mencionados tinham a exclusiva missão de observar as eleições e não a de intervir. Resta saber o motivo pelo qual o assessor presidencial, com a sua enganosa versão, tentou ludibriar a comissão parlamentar. Talvez, o propósito tenha sido o de uma cautelar defesa prévia ante a possível instauração de processo de impeachment do Presidente da República por violação do artigo 4º da Constituição brasileira. 

sábado, 2 de novembro de 2024

BOLA DE OURO

Em Paris, no dia 28 de outubro de 2024 (segunda-feira), realizou-se a cerimônia anual de premiação dos melhores jogadores, treinadores e equipes de futebol do mundo. Trata-se do concurso denominado Bola de Ouro criado em meados do século XX pela empresa jornalística editora da revista France Football. De 1956 a 2024, foram premiados jogadores de futebol masculino de cada um dos seguintes países: I. Alemanha, França e Itália: 5 jogadores de cada país. II. Brasil e Inglaterra: 4. III. Espanha, Holanda, Portugal e Ucrânia: 3. IV. Argentina, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Escócia, Hungria, Irlanda, Rússia e Tchecoslováquia: 1. 
Todos esses jogadores atuavam na Europa. Dessa lista constam apenas 2 países da América: (i) Brasil, com Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká (ii) Argentina, com Messi.
Por sua vez, a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, também realiza desde 1991, concurso com nome, data e local próprios. Essa entidade faz pesquisa com treinadores e capitães de seleções nacionais, jornalistas e torcedores de diferentes países. Até 2022, inclusive, foram agraciados jogadores dos seguintes países: I. Brasil, 3 jogadores: Romário, Ronaldo, Ronaldinho. II. Alemanha, Argentina, França, Polônia e Portugal, cada um com 1 jogador: Matthaus, Messi, Zidane, Lewandowski e Figo, respectivamente.  
A seriedade e a importância desses concursos são relativamente pequenas, embora o alarde seja grande. Basta lembrar que feras do futebol mundial como Didi, Garrincha, Pelé, Zico, Maradona, Batistuta, Kempes, Riquelme, jamais receberam prêmios desses concursos.  
Ao conceder a Rodri, jogador espanhol, o título de melhor jogador de futebol masculino da temporada 2023/2024, a citada revista provocou celeuma. O favorito era o brasileiro Vinicius. Houve protesto (a) do jogador e do seu clube Real Madrid que não compareceram à cerimônia (b) da massa de aficionados do futebol. O fato foi narrado, comentado e debatido na imprensa, nas emissoras de televisão e nas redes sociais. Esse episódio enseja algumas considerações. 
O concurso é organizado por empresa privada. A ela cabe ditar as regras e conceder prêmios a quem lhe aprouver. A empresa elabora lista de candidatos e distribui cópias a 100 jornalistas cujos nomes não são divulgados. Acredita-se que sejam jornalistas de diferentes países, que fazem coberturas de jogos de futebol e se ocupam de matéria futebolística. A empresa estabelece os critérios a serem adotados pelos jornalistas. Desses critérios, dois são de natureza técnica: referem-se aos desempenhos individual e coletivo do jogador. O terceiro critério é de natureza ética: refere-se ao comportamento do jogador na temporada. 
Os jornalistas avaliaram coisas diferentes como se fossem iguais. Na sua função de meio-campista, Rodri mostra-se bisonho em algumas jogadas, o suficiente para excluí-lo da categoria de craque. Na sua função de atacante, Vinicius é craque, porém, na seleção brasileira tem jogadores melhores do que ele: Estevão, Luiz Henrique, Rodrygo. 
Provavelmente, os jornalistas julgaram sofrível o comportamento de Vinicius. Ao receber ofensas racistas, ele perde as estribeiras; reage de forma escandalosa; faz do estádio palco e vitrine da sua revolta contra o racismo. Isto gera apreensão e constrangimento às crianças e aos adultos de ambos os sexos que comparecem aos estádios para se distrair e torcer por seus times. Há meios, ocasiões e locais adequados para manifestar-se como, por exemplo, na entrevista posterior ao jogo. Se Vinicius reincidir no comportamento censurado, como ele disse que vai fazer, certamente sofrerá consequências. Incidem: 1. A lei da Física: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário. 2. A lei do Direito: toda pessoa juridicamente capaz é responsável por seus atos na vida civil
Nas repúblicas democráticas onde vigoram as liberdades públicas, as cidadãs e os cidadãos não estão obrigados: (i) a aderir aos movimentos sociais da negritude, do feminismo, do homossexualismo, das minorias em geral (ii) a ouvir arengas e aturar rompantes dos componentes desses e de outros movimentos como, por exemplo, o dos neopentecostais. 
Como a sociedade não é um bloco granítico, as suas distintas partes devem se respeitar mutuamente e conviver de modo civilizado. 
No que concerne às ofensas racistas proferidas no estádio por torcedores espíritos de porco, cabe ao treinador da equipe ou ao representante legal do clube ali presente, providenciar junto ao policiamento a identificação e a detenção dos ofensores. 
No que tange aos concursos, o jogador tem o direito de se negar a participar. Ao saber que o seu nome está entre os candidatos ao prêmio, o jogador pode notificar os organizadores para retirá-lo da lista sob pena de eles responderem por perdas e danos. Nome é direito personalíssimo do seu titular. Outrossim, quem de modo tácito ou de modo expresso, aceita concorrer, submete-se, ipso facto, às regras do concurso, tanto as escritas como as postas pelo costume.