quinta-feira, 28 de novembro de 2024

OS MILITARES E A REPÚBLICA

Nas investigações da polícia federal noticiadas pela imprensa e pelo jornalismo televisivo, constatou-se a materialidade e a autoria do golpe desferido contra (i) a república democrática brasileira (ii) as vidas dos vencedores das eleições presidenciais de 2022 e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. O complô foi montado por militares ativos e da reserva e por civis de dentro e de fora do governo, todos integrantes da facção nazifascista liderada pelo então presidente da república. Apesar de o plano estar bem elaborado graças aos conhecimentos estratégicos dos militares, a sua execução falhou por falta de adesão da maior parte da oficialidade. Os crimes planejados não se consumaram; ficaram na tentativa. A ação delituosa não atingiu o resultado final. A responsabilidade por esses crimes é exclusiva dos seus agentes e não das instituições a que pertencem: Marinha, Exército, Aeronáutica, Universidade, Empresa, Igreja Evangélica, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Administração Pública.
Os golpes de estado no Brasil explicam-se pela vocação caudilhesca reinante e pela questionável necessidade de manter forças armadas em tempo de paz. As relações entre o Brasil e os seus vizinhos da América do Sul são pacíficas desde o fim da guerra com o Paraguai (1865-1872). Da segunda guerra mundial (1939-1945) o exército brasileiro participou no biênio final, na Itália, sem que pairasse ameaça ao povo brasileiro. O governo brasileiro enviou para lá força expedicionária em troca da construção da usina siderúrgica de Volta Redonda e da fundação da Companhia Vale do Rio Doce para explorar minérios, negociadas em 1941 por Getúlio Vargas com o governo dos Estados Unidos. O preço do negócio foi a vida de mais de 400 soldados brasileiros. A briga não era com o Brasil e sim entre países europeus. O governo dos Estados Unidos resolveu ajudar o governo da Inglaterra e levou o Brasil de cambulhada. 
Neste século XXI, rivalidades militares e corridas armamentistas diminuem enquanto crescem as rivalidades econômicas, as batalhas comerciais, a corrida tecnológica. Disputas entre nações exigem menos tropas de soldados e mais tropas de economistas, empresários, cientistas e técnicos. A segurança nacional depende mais da diplomacia e menos do exército.
Ante o exposto, afigura-se insana e indecente a fortuna que a nação brasileira gasta para manter forças armadas parasitárias, oficialato encharcado de bebidas finas e entupido de comidas refinadas, enquanto milhões de brasileiros passam fome, necessitam de assistência médica e hospitalar, desempregados, sem fonte de renda para sustento da família, vivem de bicos e da mendicância. Os civis que estão empregados cumprem duras jornadas por salários irrisórios. O sistema produtivo carece de incentivos do estado. Os civis são os alicerces da nação; empregam a sua inteligência, os seus conhecimentos, os seus talentos e a sua força de trabalho na produção nacional de bens e na prestação de serviços. Há insuficiência de dinheiro e de material nos setores da saúde, educação, cultura, ciência, tecnologia, meio ambiente, comunidade indígena. O aumento da verba orçamentária para tais setores é justo e necessário.    
Na tradição militarista do Brasil, desde o golpe desferido contra a monarquia em 1889 até o golpe desferido contra a república democrática em 2022, as forças armadas se constituíram em poder militar absorvente do poder civil. Nivelaram a república brasileira às repúblicas de bananas do continente americano, submissas ao governo estadunidense. Outrossim, o Brasil não entra em conflito bélico com outras nações há 152 anos. Portanto, mostra-se razoável e compatível com a decência, a redução do efetivo e da verba orçamentária das forças armadas, bem como, o corte radical das mordomias e dos penduricalhos.  
Quer na democracia liberal, quer na democracia social, o papel das forças armadas não é o de poder militar e sim o de servidoras do poder civil. Elas integram o sistema de segurança nacional, atuam em tempo de guerra e se recolhem ao quartel em tempo de paz, sem se imiscuir (i) nos assuntos da constitucional competência dos poderes legislativo, executivo e judiciário (ii) nos negócios privativos da sociedade civil. 
Nas repúblicas democráticas federativas, cada ente federado, dentro dos seus limites territoriais, tem o seu sistema de segurança pública estadual a fim de manter a ordem e combater o crime. A intervenção federal nessa área é limitada e casuística ante a soberania residual dos estados federados, como acontece na União norte-americana, ou, ante a autonomia dos estados federados, como acontece na União brasileira. Tanto na guerra como na paz, as forças armadas subordinam-se ao Chefe de Estado (Poder Executivo) e aos Representantes da Nação (Poder Legislativo). 
Historicamente, no Brasil, as forças armadas impõem os seus projetos. A espada atemoriza e constrange a autoridade civil. O legislador constituinte se curvou às forças armadas e as colocou no texto constitucional (i) em primeiro lugar, como defensoras da “Pátria” (ii) em segundo lugar, como garantidoras dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Tal colocação facilita golpes de estado. Os conspiradores se dizem amparados no texto constitucional. Urge dar nova redação ao artigo 142 da Constituição da República e alterar a legislação militar em sintonia com os novos tempos.   

Alencar, Francisco e/os. História da Sociedade Brasileira. Rio. Ao Livro Técnico. 1985. Pag. 158 + 255. 
Código Penal Brasileiro. Artigos 13/14.
Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Artigo 142.
Kennedy, Paul. Preparando para o Século XXI. Rio. Campus. 1993. Pag. 126/27 + 337/39.        
Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. Vol. 2. 2016. Pag. 1199/1200. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

CRIME INEXISTENTE

Alcindo entrou em casa com o cenho fechado e pisando duro.  Foi direto para o quarto. Abriu a porta do guarda-roupa e do fundo da prateleira superior retirou uma caixa de madeira de 20 cm de altura x 25 cm de largura x 40 cm de comprimento. Colocou-a sobre a mesa da sala. Levantou a tampa e retirou o conteúdo: revólver Smith & Wesson, calibre 38, estojo com balas, vareta com esponja numa das pontas, uma peça retangular de camurça amarela. Limpava a arma quando, vagarosamente, Marinês se aproxima e pergunta: - O que você está fazendo? 
Enquanto colocava balas no tambor, Alcindo, de mau humor, respondeu: - O que você está vendo, Nês. 
- Por aquilo que estou vendo, Alci, eu não preciso perguntar e sim pelo que eu não estou vendo e só pressentindo. Eu vejo o que você está fazendo com as mãos e com a arma, só não vejo o que você está pensando e o que pretende fazer. Eu quero saber o que está passando pela tua cabeça. 
- Nada de complicado, Nês. Vou matar aquele filho da puta! 
- De quem você está falando, Alci? 
- Estou falando do Evaristo, o lazarento marido da tua prima. 
- O que foi que ele te fez, homem do céu? 
- Eu soube, lá no bar, que ele anda dizendo por aí, estar te comendo. 
- E você acreditou? 
- Que ele anda espalhando o boato, sim. Que ele te comeu, não. Por isto mesmo, vou crivar de balas a cara daquele mentiroso. 
- Não estou entendendo. Se eu e você não acreditamos nessa lorota, não vejo motivo para essa tua drástica reação. 
- Essa “lorota”, Nês, como você a chama, tem outro nome: di-fa-ma-ção. Quanto a você, mulher leviana. Quanto a mim, corno manso. É a nossa honra que está sendo manchada. 
- Verdade com a qual não atinei prontamente, Alci. Porém, acho melhor, antes de qualquer agressão física da tua parte, a gente conversar com a minha prima e o Evaristo. 
- Conversar? De jeito nenhum! Eu vou lá para mandar aquele puto para o cemitério. 
- Você não está pensando em mim, na Juliana e no Pedro, nossos filhos. Ninguém da família ficará feliz com você na cadeia. Eu vou com você até a casa da Eneida. Guarde o revólver e, por favor, não faça escândalo.  
Alcindo entrou na casa da prima da sua esposa com voz alta perguntando por Evaristo. - Está lá em cima, informou Eneida ao mesmo tempo em que chamava o marido pelo nome. Ela ficou apreensiva ao ver a carranca de Alcindo. Pela escada que leva ao andar superior da casa, Evaristo desceu e cumprimentou com simpatia: 
- Boa tarde, primos. A que devemos a visita? 
- À tua vida ou à tua morte, desgraçado! 
Alcindo disse isto sacando o revólver. Marinês segurou e empurrou o pulso do marido para baixo. Precavido, Evaristo saltou para trás da mesa levando com ele a toalha e o vaso de flores. Assustada, Eneida interpelou Alcindo: 
- O que é isto? Você ficou maluco? 
- Maluco não. Eu estou é furioso com o teu marido que espalhou pelo bairro a notícia de estar comendo a Marinês. 
- Santo deus! Que barbaridade é esta, minha prima? 
Eneida parecia atordoada ao se dirigir a Marinês e a Evaristo. Lá do canto onde estava entrincheirado, Evaristo brada: 
- Isso é mentira. Eu nunca disse isto! 
Marinês contestou: 
- Disse isto sim senhor, lá no bar, seu babaca. Eu jamais transaria contigo, nem que você fosse o João Travolta!  
Evaristo protesta inocência: 
- Tá havendo algum mal-entendido. 
Alcindo, girando nervosamente o punho com o revólver na mão, diz grosseiramente:
- Então, desembucha logo, palhaço! 
Eneida interfere: 
- Vamos parar com as ofensas. Vocês estão na minha casa e eu exijo respeito. Explique para eles e para mim, Evaristo, o que está acontecendo.
Eneida falou de modo zangado e autoritário. O marido obedeceu. Ele assume a postura cautelosa de quem entra em terreno perigoso. 
- Eu não sei o que disseram para o Alcindo lá no bar. Rolou o nome da Marinês, sim, durante uma brincadeira de homens. Estávamos reunidos em torno da mesa tomando cerveja, o Júlio Ramos, o Sérgio da banca, o Adauto Silva e eu, quando, a certa altura da prosa, o Júlio nos provocou:
- Qual das mulheres aqui do bairro vocês gostariam de comer? Não vale a própria esposa! 
- Depois de dizer a preferida dele, Júlio foi apontando para cada um de nós. Ao chegar a minha vez, sem muita escolha, eu lembrei da prima da Eneida. Então, eu disse: Quanto a mim, eu comia a Marinês.
- Portanto, eu nunca disse que havia comido a tua esposa Alcindo. Eu não sei se eles te informaram errado ou se você ouviu errado. O que eu posso fazer é pedir desculpa a Marinês por ter usado o nome dela, e a você porque no momento daquela brincadeira, não pensei que poderiam te ver como corno manso. Vou ao bar hoje mesmo esclarecer isto e acabar com essa fofoca. 
Marinês pediu ao marido que guardasse o revólver na cartucheira. Embora de má vontade, os dois aceitaram as explicações dadas e as desculpas apresentadas por Evaristo. Já em casa, depois de algum tempo, ânimos acalmados, xícaras, colherinhas, açucareiro e garrafa térmica com café sobre a mesa, Alcindo, caçoando da esposa, diz: 
- João Travolta? Caramba, Nês! Astro de “No Tempo da Brilhantina”, filme americano da segunda metade do século XX? 
Marinês, rindo: 
- Foi o personagem que me veio à cabeça naquela hora turbulenta. Ele era o galã, sonho romântico da minha adolescência e das minhas amigas do colégio. 
- Você viu como ele está hoje? Rico, feio, gordo e calvo. 
- Não vi e nem quero ver. Quero guardar a bonita imagem dos sonhos da minha juventude. No que tange às sombras do presente, ainda bem que tudo ficou só na tentativa. 
- Que tentativa, Nês? Eu nem cheguei a apontar o revólver para o Evaristo porque você me impediu. Eu não fiz disparo e nem o feri de modo algum. Até poderia ter dado umas porradas nele, que bem merecia.  
- Eu sei. Eu estava lá. Não estou te acusando de nada. Como você sabe, eu trabalho no escritório do Dr. Castro, advogado criminalista. Então, eu e outros colegas que lá trabalham acabamos por usar a linguagem do escritório. Aliás, agora que Juliana e Pedro estão criados e frequentando cursos universitários, eu decidi voltar à Faculdade e terminar o curso de Direito. Sobre o entrevero com meus primos, quero apenas ponderar. Você pensou em matar o Evaristo. 
- Nês, meu bem, eu posso pensar em matar o Papa. E daí? Qual é o crime? E a minha liberdade de pensamento, onde fica? 
- Tá certo, “meu bem”. Pensar é faculdade da mente humana. Mesmo não sendo externado, o pensamento pode ser pecado segundo a doutrina cristã. Excluída essa esfera religiosa, o pensamento dentro do nosso eu interior é cogitação impunível. Liberdade plena. Entretanto, se você expressá-lo no meio social, aí a coisa muda de figura. Conforme o teor do pensamento manifestado, o contexto e a repercussão, você pode ser punido. Se você colocar em prática a ideia de matar, ainda que não chegue ao resultado final, você adentra o terreno da tentativa, ou seja, transita pelo caminho do ilícito penal. 
- Negativo, minha querida! Você, teus colegas do escritório e o Dr. Castro, que me desculpem. O fato de eu ter limpado, municiado, portado o revólver e me deslocado até a casa do Evaristo, não significa que eu tentei matá-lo. Foi um ensaio nervoso e não o ato principal.  
- Desculpe-nos você, meu querido, porque o caso não é tão simples assim. Enquanto você só lidava com o revólver no propósito de usá-lo, ainda não havia crime algum. Ficaria tudo na preparação indiferente à lei penal. Todavia, quando você saiu armado da nossa casa e foi à casa do Evaristo, o ilegal porte de arma já se configurara. Ao chegar à casa dele com a intenção de matá-lo, aí, meu querido, eu acho que você começou a execução do delito de homicídio. Faltou apenas a conclusão.  
- Aí é que está, “minha querida”.  O meu projeto não se tornou realidade. Eu mudei de ideia antes de atirar no Evaristo. Logo, não há falar em início de execução! Nês, querida, execução é execução, ação inteira e direta, sem estar dividida em começo, meio e fim.  
- O entendimento do legislador foi diferente, Alci. Para o Congresso Nacional, a execução do crime implica um itinerário trifásico: início da ação delitiva, desenvolvimento e resultado final. Embora você não tenha consumado o homicídio, o teu proceder, segundo a lei do estado em vigor, tipifica tentativa punível. Por isto, eu falei em tentativa. 
- Ah! Então é assim? Eu não mato o desgraçado, desisto antes de atirar e, mesmo assim, posso ser preso, processado e condenado por homicídio? 
- Por tentativa, Alci ... por tentativa. Não exagere. Se mudarem os costumes, as próximas gerações poderão considerar absurda a ideia de punir a tentativa. Em consequência, poderão alterar a política criminal e expurgar essa figura do código penal. Neste nosso caso concreto, o Evaristo e a Eneida não apresentarão queixa na delegacia de polícia. Sem a notícia do crime, sem a vítima e sem testemunhas, o delegado não pode instaurar inquérito. Ao desistir de matar o Evaristo, você atenuou a tua situação perante a lei. Restou o crime de ameaça. Todavia, nem por esse delito você vai responder porque a Eneida e o Evaristo decidiram sepultar esse episódio. Por nossa vez, também não vamos apresentar queixa contra eles por difamação. 
- Sabe de uma coisa, Nês? Estou gostando da ideia de você retornar para a Faculdade e terminar o curso de Direito. Vá em frente e manda brasa!  
- “Manda brasa”, Alci? Parece que a nossa memória afetiva está nos levando de volta à segunda metade do século XX!

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

DINHEIRO & FUTEBOL

O mundo esportivo brasileiro ficou alvoroçado quando veio a público o estremecimento das relações entre a diretoria do Flamengo e o jogador Gabriel Barbosa enquanto era negociada a renovação do contrato de trabalho desportivo. Houve desacordo sobre salário e prazo do novo contrato. A legislação brasileira permite os prazos mínimo de 3 meses e máximo de 60 meses. A diretoria ofereceu 12 meses. O jogador pretende 60 meses. Cuida-se de negociação legal e regular como acontece em outras áreas da economia. 
A diretoria trata o negócio como investimento. Na mentalidade capitalista não há lugar para gratidão e nem para princípios morais e religiosos. Ao propor prazo curto, a diretoria mostra temor que a médio ou a longo prazo, o investimento não seja bom. Implicada nesse temor, está a desconfiança sobre a eficiência do jogador ante o seu fraco rendimento na última temporada. 
O jogador trata o negócio como garantia do padrão de vida seu e da sua família nos próximos 5 anos. Ele informa a existência de anterior pacto oral firmado na presença dos seus familiares com diretores do Flamengo que aguardava a ratificação por escrito. Posteriormente, a diretoria, orientada pela autoridade do presidente, negou-se a celebrar o contrato por escrito com as mesmas cláusulas avençadas oralmente. A atitude do presidente neste episódio lembra a do anão que sobe nos ombros do gigante a fim de parecer mais alto e mais forte. 
O contrato vigente termina em dezembro de 2024. Portanto, extingue-se por exaustão do prazo. Em janeiro de 2025, o jogador estará livre para prestar seus serviços a outro clube, no Brasil ou em outro país. No Brasil, há leis especiais para o setor desportivo: 6.354/1976, do período autocrático; 9.615/1988 + 14.597/2023, do período democrático. A todas estas leis, as normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da Previdência Social são subsidiárias. Sob a égide da Constituição e dessa legislação, os clubes e os jogadores celebram por escrito contratos de direito privado, cujas cláusulas devem estar em sintonia com a ordem jurídica positiva. O contratante (clube) se compromete a pagar salário e outras verbas ao contratado e o contratado (jogador) se compromete a prestar o serviço para o qual está qualificado. 
No caso Flamengo x Gabriel, as relações contratuais perderam a privacidade ao ganharem inusitada publicidade. As condições da renovação passaram a ser discutidas pela imprensa escrita e em programas esportivos de emissoras de televisão por jornalistas que se arvoraram em juízes e tribunais de justiça. Julgamentos de mínima racionalidade e máxima paixão. “Juízes” venais, sem qualificação jurídica, moral, intelectual e cultural. O salário do jogador incomoda esses “juízes” ciumentos e invejosos porque a remuneração deles é menor. 
Não julgueis e não sereis julgados, porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos
Palavras ditas no sermão da montanha por Jesus, o Cristo, cujo pressuposto é a incidência da cósmica Lei do Karma. O profeta sabia (i) que julgar é operação lógica própria da inteligência humana (ii) que há juízes do estado cujo dever é julgar pessoas e solucionar conflitos. O objetivo do profeta foi mostrar a ilicitude dos juízos morais levianos e a importância transcendental da verdade.    
Servindo-se de números sem os dados substanciais correspondentes, esses “juízes e tribunais jornalísticos”: 1) Desqualificam o jogador e o condenam por rejeitar a proposta do clube empregador. 2) Silenciam sobre o contexto do período das negociações que afetaram o rendimento do jogador em campo. 3) Ocultam a conduta hostil da diretoria e do treinador nesse período. 4) Desconsideram a evidência de a diretoria estar se aproveitando da torpeza dela própria para atirar a culpa sobre o jogador. 5) Tratam o caso sob ângulo desfavorável ao jogador e favorável ao empregador, o que levanta a suspeita de que eles, juízes dos tribunais da imprensa e da televisão, recebem jabás para atuarem com parcialidade. 6) Citam o exame de doping a que o jogador foi submetido sem mencionar que o dito exame foi realizado fora de qualquer competição, em dia de treino, dentro do clube, em frontal violação dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição da República. 7) Omitem o fato de os diretores descumprirem a palavra empenhada perante o jogador e seus familiares. 8) Mostram indiferença diante do princípio ético segundo o qual quem não honra a palavra dada revela deficiência de caráter. 
A diretoria do clube afastou o jogador da partida de 13/11/2024 (Flamengo x Atlético MG) sob o ridículo e infantil pretexto de que ele foi egoísta ao anunciar, em hora imprópria, ainda em campo, sua saída do clube, atraindo para si a simpatia da torcida. Os “juízes” acolheram essa justificativa sem a devida atenção aos fatos e às regras. 
A amena atitude do jogador não tipifica infração disciplinar em qualquer das vigentes leis esportivas. Nota-se na imagem uma pessoa tranquila, sem ódio, sem raiva, em certo momento com sorriso tristonho, explicando ao entrevistador que deixará o clube no final do ano, que a renovação não foi possível, que a diretoria não o valorizou e nem cumpriu o prometido a ele e aos seus pais. No momento certo e no local adequado, o jogador deu satisfação à torcida rubro-negra da qual é ídolo. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

VENEZUELA AGAIN II

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil expediu, no dia 1º de novembro de 2024, nota em defesa dos seus diplomatas e do Presidente da República no caso do veto do governo brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. Diz (a) que o Brasil sempre teve apreço ao princípio da não-intervenção e pleno respeito à soberania dos outros estados (b) que o interesse do Brasil no processo eleitoral da Venezuela, no qual esteve presente como testemunha, decorre do Acordo de Barbados.
O Brasil que a nota menciona é o governo e não o povo brasileiro. Esses dois elementos estruturais do estado nem sempre estão em sintonia. No caso em tela, uma parcela do povo está a favor e outra está contra a decisão do governo de vetar. Mediante plebiscito ou referendo, saber-se-á qual das duas parcelas constitui maioria. 
O trecho da nota sobre o respeito à soberania e a não-intervenção fica bonito no plano dos princípios. Todavia, no plano dos fatos, o governo brasileiro desrespeitou a soberania da Venezuela; intrometeu-se na política doméstica, na disputa entre situação e oposição; extrapolou o seu papel de observador; fez exigências descabidas. Ser testemunha não significa ser parte. Ser observador não significa ser interventor. Às missões estrangeiras mencionadas no Acordo de Barbados cabia unicamente observar o andamento das eleições e, nesse exclusivo mister, transitar pelo território da Venezuela. Nenhum direito foi outorgado aos missioneiros para pressionar, contestar, exigir provas, aplicar sanções, orientar e financiar as partes, estimular golpes de estado. 
O Acordo Parcial Sobre a Promoção de Direitos Políticos e Garantias Para Todos, sinteticamente tratado como Acordo de Barbados, foi celebrado em outubro de 2023, em Barbados, ilha localizada no Oceano Atlântico, a nordeste da Venezuela, território da república parlamentarista independente lá instalada. 
Constam como partes celebrantes: Governo da República Bolivariana da Venezuela, de um lado (situação) e, de outro, Plataforma Unitária da Venezuela (oposição). Só essas partes, e ninguém mais, têm legítimo interesse para questionar o Acordo. Trata-se de res inter alios acta, assunto interna corporis a ser cuidado dentro do sistema jurídico venezuelano. 
O Acordo, no seu exórdio e nas cláusulas terceira, item 5, e sexta: 1. Resguarda a soberania da Venezuela. 2. Assegura o vigor da Constituição e da lei orgânica do processo eleitoral. 3. Prima pela igualdade de meios na campanha eleitoral. 4. Opõe-se a intervenção estrangeira e a qualquer forma de violência política contra a Venezuela, seu estado e suas instituições. 5. Valoriza a democracia inclusiva e a cultura da tolerância e da coexistência pacífica. 
O objetivo do Acordo foi o de disciplinar as eleições venezuelanas do segundo semestre de 2024. Realizadas as eleições, extingue-se o Acordo pela perda de objeto.
O Assessor Especial do Presidente da República Federativa do Brasil compareceu a uma audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados a fim de explicar o veto brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. O veto aconteceu na 16ª Cúpula da BRICS. No seu depoimento, o assessor presidencial afirmou: (i) que o veto resultou do consenso entre os países fundadores do bloco BRICS (ii) que há um mal-estar entre Brasil e Venezuela por causa do processo eleitoral questionado pela comunidade internacional sobre falta de transparência e das atas da votação (iii) que a mediação do Brasil e de outros países estava prevista no Acordo de Barbados celebrado entre os grupos políticos venezuelanos. 
Essa versão do assessor presidencial colide com os fatos. Inexistiu consenso. Houve dissenso. Dos 5 membros fundadores da BRICS, apenas 1 votou contra a admissão da Venezuela. Faltou a unanimidade exigida pela regra da aliança para admitir novos membros. Essa regra talvez seja substituída na próxima Cúpula pela regra da prevalência da vontade da maioria nas decisões colegiadas. Da “comunidade internacional” referida pelo assessor presidencial participam o Brasil, os Estados Unidos e seus satélites. Seja o presidente democrata ou republicano, o governo dos Estados Unidos manterá a sua política hostil à aliança BRICS. Na comunidade internacional de países da BRICS essa matéria não foi questionada. O Presidente da Cúpula, na entrevista coletiva concedida à imprensa no final dos trabalhos, foi claro ao espelhar a vontade da maioria dos votantes: o reconhecimento da legitimidade das eleições e do governo da Venezuela. Essa maioria formada por África do Sul, China, Índia e Rússia, não faz restrição alguma ao ingresso da Venezuela na aliança. 
A “mediação” do Brasil e outros países referida pelo assessor presidencial não consta do Acordo de Barbados. Os países nele mencionados tinham a exclusiva missão de observar as eleições e não a de intervir. Resta saber o motivo pelo qual o assessor presidencial, com a sua enganosa versão, tentou ludibriar a comissão parlamentar. Talvez, o propósito tenha sido o de uma cautelar defesa prévia ante a possível instauração de processo de impeachment do Presidente da República por violação do artigo 4º da Constituição brasileira. 

sábado, 2 de novembro de 2024

BOLA DE OURO

Em Paris, no dia 28 de outubro de 2024 (segunda-feira), realizou-se a cerimônia anual de premiação dos melhores jogadores, treinadores e equipes de futebol do mundo. Trata-se do concurso denominado Bola de Ouro criado em meados do século XX pela empresa jornalística editora da revista France Football. De 1956 a 2024, foram premiados jogadores de futebol masculino de cada um dos seguintes países: I. Alemanha, França e Itália: 5 jogadores de cada país. II. Brasil e Inglaterra: 4. III. Espanha, Holanda, Portugal e Ucrânia: 3. IV. Argentina, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Escócia, Hungria, Irlanda, Rússia e Tchecoslováquia: 1. 
Todos esses jogadores atuavam na Europa. Dessa lista constam apenas 2 países da América: (i) Brasil, com Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká (ii) Argentina, com Messi.
Por sua vez, a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, também realiza desde 1991, concurso com nome, data e local próprios. Essa entidade faz pesquisa com treinadores e capitães de seleções nacionais, jornalistas e torcedores de diferentes países. Até 2022, inclusive, foram agraciados jogadores dos seguintes países: I. Brasil, 3 jogadores: Romário, Ronaldo, Ronaldinho. II. Alemanha, Argentina, França, Polônia e Portugal, cada um com 1 jogador: Matthaus, Messi, Zidane, Lewandowski e Figo, respectivamente.  
A seriedade e a importância desses concursos são relativamente pequenas, embora o alarde seja grande. Basta lembrar que feras do futebol mundial como Didi, Garrincha, Pelé, Zico, Maradona, Batistuta, Kempes, Riquelme, jamais receberam prêmios desses concursos.  
Ao conceder a Rodri, jogador espanhol, o título de melhor jogador de futebol masculino da temporada 2023/2024, a citada revista provocou celeuma. O favorito era o brasileiro Vinicius. Houve protesto (a) do jogador e do seu clube Real Madrid que não compareceram à cerimônia (b) da massa de aficionados do futebol. O fato foi narrado, comentado e debatido na imprensa, nas emissoras de televisão e nas redes sociais. Esse episódio enseja algumas considerações. 
O concurso é organizado por empresa privada. A ela cabe ditar as regras e conceder prêmios a quem lhe aprouver. A empresa elabora lista de candidatos e distribui cópias a 100 jornalistas cujos nomes não são divulgados. Acredita-se que sejam jornalistas de diferentes países, que fazem coberturas de jogos de futebol e se ocupam de matéria futebolística. A empresa estabelece os critérios a serem adotados pelos jornalistas. Desses critérios, dois são de natureza técnica: referem-se aos desempenhos individual e coletivo do jogador. O terceiro critério é de natureza ética: refere-se ao comportamento do jogador na temporada. 
Os jornalistas avaliaram coisas diferentes como se fossem iguais. Na sua função de meio-campista, Rodri mostra-se bisonho em algumas jogadas, o suficiente para excluí-lo da categoria de craque. Na sua função de atacante, Vinicius é craque, porém, na seleção brasileira tem jogadores melhores do que ele: Estevão, Luiz Henrique, Rodrygo. 
Provavelmente, os jornalistas julgaram sofrível o comportamento de Vinicius. Ao receber ofensas racistas, ele perde as estribeiras; reage de forma escandalosa; faz do estádio palco e vitrine da sua revolta contra o racismo. Isto gera apreensão e constrangimento às crianças e aos adultos de ambos os sexos que comparecem aos estádios para se distrair e torcer por seus times. Há meios, ocasiões e locais adequados para manifestar-se como, por exemplo, na entrevista posterior ao jogo. Se Vinicius reincidir no comportamento censurado, como ele disse que vai fazer, certamente sofrerá consequências. Incidem: 1. A lei da Física: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário. 2. A lei do Direito: toda pessoa juridicamente capaz é responsável por seus atos na vida civil
Nas repúblicas democráticas onde vigoram as liberdades públicas, as cidadãs e os cidadãos não estão obrigados: (i) a aderir aos movimentos sociais da negritude, do feminismo, do homossexualismo, das minorias em geral (ii) a ouvir arengas e aturar rompantes dos componentes desses e de outros movimentos como, por exemplo, o dos neopentecostais. 
Como a sociedade não é um bloco granítico, as suas distintas partes devem se respeitar mutuamente e conviver de modo civilizado. 
No que concerne às ofensas racistas proferidas no estádio por torcedores espíritos de porco, cabe ao treinador da equipe ou ao representante legal do clube ali presente, providenciar junto ao policiamento a identificação e a detenção dos ofensores. 
No que tange aos concursos, o jogador tem o direito de se negar a participar. Ao saber que o seu nome está entre os candidatos ao prêmio, o jogador pode notificar os organizadores para retirá-lo da lista sob pena de eles responderem por perdas e danos. Nome é direito personalíssimo do seu titular. Outrossim, quem de modo tácito ou de modo expresso, aceita concorrer, submete-se, ipso facto, às regras do concurso, tanto as escritas como as postas pelo costume.