domingo, 18 de agosto de 2024

O DIREITO E O TORTO II

As eleições presidenciais de julho de 2024, na Venezuela, estão sendo contestadas interna e externamente. Sem prova idônea, os contestantes afirmam que a reeleição do presidente resultou de fraude eleitoral e que o sistema jurídico, desde o conselho nacional eleitoral até a suprema corte de justiça, está contaminado pela parcialidade favorável ao candidato da situação. 
No mundo jurídico, a imparcialidade dos juízes anterior ao exame da causa é dever moral. A posterior parcialidade dos juízes no devido processo legal é consequência jurídica do julgamento da causa a favor de uma das partes. Não há empate. 
Novas eleições dentro do mesmo sistema impugnado estariam igualmente viciadas. O remédio seria instituir um conselho eleitoral imparcial formado por autoridades estrangeiras, ou, derrubar o atual governo, colocar na presidência o candidato da oposição, estabelecer um regime político de direita amasiado com o governo dos Estados Unidos. Soluções tortas, contrárias ao direito vigente, embriões de um novo direito.
Os contestantes alegam, ainda, que a população padece de fome e de doenças e a economia da Venezuela está péssima por culpa do atual regime político. Alegam como se dezenas de países não tivessem os mesmos padecimentos. Os contestantes ocultam o fato de que essa calamitosa situação que descrevem foi provocada pelas desumanas sanções impostas pelos Estados Unidos e vigentes há décadas. Os contestantes se valem da sua própria torpeza para atacar o governo venezuelano. A contestação externa comandada pelo governo dos Estados Unidos, exibindo os seus músculos de potência nuclear, vem apoiada pelos seus satélites americanos e europeus (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Reino Unido, União Europeia, OTAN, OEA).
No concerto das nações, a Venezuela é reconhecida como estado soberano. Por isto mesmo, ela não está subordinada aos Estados Unidos, nem aos países satélites e organismos internacionais sob controle daquela potência ocidental. Quanto ao seu regime político, a Venezuela independe do reconhecimento internacional. A assunção de alguém na chefia do estado interessa à ordem internacional ante os pressupostos da pluralidade, coexistência, solidariedade, interdependência global, comitas gentium. Entretanto, nenhum estado tem o direito de questionar a legitimidade do mandato do chefe do outro estado. Essa questão diz respeito exclusivamente ao povo local protegido pelo princípio da autodeterminação que informa o direito internacional público. Vigora, também, o princípio jurídico da igualdade dos estados na ordem internacional: per in parem non habet judicium. Entre pares não há julgamento. Nenhum governo tem o direito de julgar e aplicar sanções a outro. Nenhum estado deve ter jurisdição em território alheio. Assuntos internos como as eleições para cargos públicos são infensos à interferência estrangeira. Bons ofícios, mediação, conciliação, arbitragem, comissão de inquérito, negociação diplomática, julgamento em tribunal judiciário internacional, são instrumentos adequados para solucionar litígios entre estados mas não para solucionar litígios internos. Questão interna resolve-se internamente, quer pela força do direito, quer pela força dos fatos, quer pela força dos fatos e do direito. Incide o princípio da não-intervenção estrangeira acolhido pelo direito internacional público. 
O chefe de estado (e de governo quando o acúmulo das duas funções no mesmo órgão está previsto na Constituição) representa o seu estado nas relações internacionais. Na ordem interna, o chefe de estado (eleito ou não eleito) é a autoridade mais alta em política exterior. Contudo, lei magna pode exigir a aprovação do Poder Legislativo para alguns dos tratados e acordos celebrados pelo Poder Executivo. 
O povo que aderiu à filosofia política bolivariana não está obrigado a adotar outra filosofia política imposta ou sugerida por alguma potência. O povo que adotou o tipo de democracia bolivariana não está obrigado a adotar o tipo de democracia liberal vigente em outro estado. A pureza das formas de governo só existe na esfera ideal e no mundo acadêmico ideologicamente informado. Na esfera real da história política vigoram pragmatismo e conveniência. Misturam-se práticas democráticas em governos autocráticos e práticas autocráticas em governos democráticos. Em todos os continentes há democracias capitalistas com práticas socialistas e democracias socialistas com práticas capitalistas. Na base dessa dinâmica assentam-se os interesses e aspirações de cada estado.    
Nas ditaduras, não há participação ativa do povo no governo, nem liberdade para  escolha dos governantes pelos governados. Todavia, quando há eleições, o afastamento de candidaturas perniciosas ao estado de direito não significa ato ditatorial. Trata-se de medida cautelar de legítima defesa do regime constitucional em vigor. 

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