terça-feira, 15 de julho de 2008

EXORBITÂNCIA NA JUSTIÇA

Aljema (grafada com j) é um instrumento metálico para ser usado nos pulsos das pessoas. A origem da palavra é árabe: al-jama´la, que significa pulseira. A grafia com g (algema) está correta, porém, lembra o vocábulo gema, de origem latina, com o prefixo árabe al (sagrado). Entre os significados da palavra gema está o de núcleo do ovo, pedra preciosa, jóia. Em sentido figurado, algema (com g) seria uma jóia sagrada para ser usada nos pulsos. Aos prisioneiros de classe alta seriam reservadas algemas em ouro, cravejadas de brilhantes, revestidas internamente com veludo almofadado e de variadas cores. Os prisioneiros pobres as teriam em aço e desprovidas de qualquer adorno. Além de outras serventias, a algema também é utilizada nas relações sexuais pervertidas.
Na atividade policial, a aljema (com j) cumpre finalidade física, moral e jurídica. Do ponto de vista físico, destina-se a impedir que o prisioneiro escape no percurso entre o local da prisão e a delegacia, cadeia ou penitenciária. A imobilização do prisioneiro é técnica de segurança. Do ponto de vista moral, destina-se a abater o ânimo do prisioneiro de modo a mantê-lo submisso à autoridade. Do ponto de vista jurídico, destina-se a determinar o momento em que a pessoa perde a liberdade, passa à tutela direta do Estado e é informada dos seus direitos. A partir daí, o Estado se torna responsável pela integridade física e moral do detento. A prisão será comunicada ao juiz, à família ou à pessoa indicada pelo preso. O juiz relaxará a prisão se constatar ilegalidade.
No episódio da prisão de Daniel Dantas, decretada por juiz federal, o princípio de que todos são iguais perante a lei ficou estremecido. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, apreciando habeas corpus, devolveu a liberdade a Daniel. Entendeu ausentes os motivos da prisão temporária e da prisão preventiva. A velocidade da prestação da tutela jurisdicional devia ser a mesma para todas as garantias individuais; não só para o habeas corpus, mas também para o mandado de injunção. Desde o dia 04-07-2008, encontra-se no gabinete do citado ministro, sem decisão até o momento (14-07-2008) mandado de injunção (MI/860) objetivando exercício de direitos políticos nas eleições municipais em curso. Como não há lei regulando tanto a exigência de moralidade para o exercício de mandato, como a extensão do exame da vida pregressa do candidato, os cidadãos dependem de norma supletiva específica para o caso concreto, expedida pelo Judiciário, até que o legislador ordinário elabore a lei geral. A partir da publicação dos editais com os nomes dos candidatos, flui exíguo prazo de 5 dias para impugnação. Os eleitores gostariam que o ministro Gilmar tivesse para com o mandado de injunção o mesmo desvelo e a mesma rapidez que teve com o habeas corpus de Daniel.
O ministro Gilmar mostra-se irritado com a polícia federal desde que nome idêntico ao seu foi citado em negócio ilícito. Por motivo de foro íntimo, o ministro devia se declarar suspeito e remeter os autos do habeas corpus ao substituto. Isto evitaria esse clima de desconfiança e de anarquia gerado pelo entra-sai da cadeia. O ministro invadiu competência originária do Tribunal Regional Federal para julgar o habeas corpus e frustrou a competência recursal do Superior Tribunal de Justiça (CF 108, I, d + 105, I, a). Por se exceder na função jurisdicional, o ministro poderá ser processado perante o Senado Federal (CF 52, II + Lei 1.079/1950, 39.2) e o Conselho Nacional de Justiça (CF 103-B, §4º). A opinião do presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves, de que o processo de impeachment não será instaurado ou não terá sucesso, não é óbice para que as pessoas e instituições legitimadas ingressem com pedido fundamentado na Constituição, na Lei e nos fatos. Os senadores que arquem com as conseqüências morais e políticas das leviandades que cometerem.
Gilmar Mendes não foi juiz antes de ser nomeado ministro e se, alguma vez, prestou concurso de provas e títulos para ingresso na magistratura de carreira, certamente foi reprovado. O STF é campo de pouso dos pára-quedas de alguns bacharéis que nunca prestaram concurso público. A sabatina no Senado é mera formalidade, conversa amena entre amigos. O juiz federal submeteu-se a rigoroso concurso e foi aprovado. Demonstrou aptidão intelectual e moral para o cargo. Tem experiência judicante. Não decretaria a prisão de Daniel se não houvesse forte indício de autoria e prova da existência do crime. A prova se faz no inquérito policial e serve de base à instauração da ação penal. Sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, essa prova será discutida no processo e alicerçará sentença condenatória se o dolo for comprovado. Em qualquer fase do inquérito policial ou do processo cabe o decreto de prisão como garantia – não só da ordem pública – como também da ordem econômica. A prisão poderá ser decretada, ainda, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. O banqueiro Salvatore Cacciola, por exemplo, se escafedeu para a Itália logo após obter ordem de habeas corpus. Só o acaso possibilitou a sua prisão e retorno ao Brasil. O mesmo poderá ocorrer com o banqueiro Daniel Dantas.
Os advogados e o editorial do jornal o Globo apoiaram a conduta do ministro, enquanto os leitores, os juízes federais, o ministério público e a associação dos magistrados brasileiros apoiaram a conduta do juiz. O ministro foi alvo da censura do público pela atuação no processo de habeas corpus francamente favorável ao banqueiro. Inegável que tanto a decisão do juiz federal como a do ministro estavam fundamentadas. A diferença está em que o juiz estribou-se na prova produzida nos autos do inquérito policial, enquanto o ministro firmou-se na sua própria e subjetiva opinião sobre a necessidade da prisão. O juiz proferiu a decisão nos limites da sua competência jurisdicional; o ministro extrapolou esses limites; de modo acintoso, ao invés da austeridade que o cargo recomenda, o ministro expôs, nos meios de comunicação, comentários desairosos ao juiz e ao ministério público.
O direito de defesa é sagrado. Em causas criminais, pouco importa se o crime é hediondo ou não, se o acusado é reincidente, se agiu de modo torpe, cruel, à traição ou qualquer outra circunstância agravante. O clamor público não há de impedir o advogado de exercer o seu ofício. O advogado é indispensável à administração da justiça e não merece censura por aceitar o patrocínio desse tipo de pessoa (CF 133). Daniel Dantas tem contra si a opinião pública, todavia, o que importa é a prova produzida na instrução criminal. Os elementos de prova, até o momento, comprometem-no seriamente. Apesar disso, convém, sempre que possível, seguir os trâmites normais quando não há flagrante: apurar os fatos, sentenciar no devido processo legal e depois prender; evitar o inverso: prender, apurar os fatos e sentenciar. Há de se pesar, também, no citado episódio, o trabalho desenvolvido pela polícia federal e pelo ministério público e a conveniência de decretar a prisão preventiva com base naquele trabalho e na presença dos requisitos legais que a autorizam.
Percebe-se que além dos requisitos legais da prisão preventiva, há o fator de desconfiança no sistema legal. A polícia não vê com bons olhos o seu trabalho ser esvaziado pelos benefícios de uma legislação frouxa. O acusado responde ao processo em liberdade; ante a prova robusta, é condenado; aguarda o esgotamento das vias recursais; no processo de execução incidem os benefícios que fazem da pena um arremedo de punição, principalmente se o réu for primário. Com esse panorama à sua frente, considerando, ainda, a probabilidade de fuga para país estrangeiro, o policial e o promotor se esforçam para que o acusado, pelo menos, passe alguns dias na prisão antes da sentença condenatória. Esperam, assim, contentar a opinião pública além de evitar o incômodo sentimento de frustração.

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