sábado, 21 de junho de 2008

Discórdia

Na sessão do dia 11/06/2008, os juízes do Supremo Tribunal Federal discutiam a obrigatoriedade de o recorrente demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais levantadas em recurso extraordinário. Caso falte essa demonstração, o recurso não será admitido (CF 102, §3º). A opinião de Ellen Gracie prevalecia. Eros Grau iniciava o seu voto afirmando o direito como prudência e não como ciência, quando foi interrompido por Marco Aurélio que afirma ser o direito uma ciência e se dirige ao presidente do tribunal alertando-o de que o debate era sobre a repercussão geral das questões constitucionais e não sobre o conceito de direito. Eros Grau, ao prosseguir no seu voto, olhava para Marco Aurélio. Foi novamente interrompido, pois Marco Aurélio viu provocação pessoal naquela atitude e pediu ao colega que sustentasse sua opinião sem olhar para ele. Olhando para o presidente do tribunal e em nome da civilidade, Eros Grau abreviou o seu pronunciamento. A nação espera maturidade e serenidade dos seus juízes, necessárias à harmoniosa convivência nos tribunais e à boa e célere prestação da tutela jurisdicional.

Quem acompanhava a sessão a distância, desconhecendo eventuais desavenças de bastidor, teve a impressão de que o olhar da discórdia era de um juiz que, educadamente, pedia vênia para discordar do colega. Em qualquer reunião, por estar concentrado nas idéias e no modo de expressa-las adequadamente, pode acontecer de o orador pousar os olhos sobre algum ponto (pessoa ou coisa) sem enxerga-lo efetivamente (sem reparar em vestes, penteado, volume). Se o ponto for os seios ou os pés de alguma senhora, isto não quer dizer que o orador seja um pervertido. Poderá haver escândalo, vias de fato, se a senhora perceber, no olhar do orador, malícia que reside nela própria exclusivamente. A posição doutrinária firmada no início do voto, certamente, servia como premissa para desenvolver o raciocínio e amparar a opinião. Os juízes são muito sensíveis quanto à autoridade moral e intelectual que torna as suas decisões alvo do respeito dos jurisdicionados e dos operadores do direito. A obediência às decisões judiciais deriva da lei que a todos obriga, porém o respeito brota do íntimo de cada pessoa. Decisões mal proferidas são acatadas por força da ordem jurídica, sem merecer o respeito do público. O juiz que as profere fica malvisto na sociedade e no meio forense. O tribunal que as apóia contribui para o desprestígio da magistratura e do Poder Judiciário.

O pomo da discórdia situa-se na confluência da Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito. Alguns autores tratam a jurisprudência como ciência, hipótese em que a oposição ciência versus prudência perde sentido. Para uns, só é ciência o estudo do fato natural (juízos de realidade); para outros, a ciência inclui o estudo do fato cultural (juízos de valor). Para uns, a idéia de direito precede a regra de direito (idealismo); para outros, a regra de direito precede a idéia de direito (empirismo). O lugar apropriado para esse debate é a universidade e os centros culturais. No bojo de um processo judicial essa discussão só acarretará perda de tempo. Como fenômeno social (ubi societas ibi jus) o direito é um complexo de regras que disciplina as relações intersubjetivas e confere estrutura normativa à sociedade e ao Estado. Sob esse ângulo, o direito não é uma ciência e sim o objeto de estudos científicos, históricos e filosóficos. Cuida-se da experiência normativa no curso da história, visando a realização de propósitos humanos, cujo estudo interessa ao jurista, ao sociólogo, ao historiador e ao filósofo. Essa experiência, decorrente da necessidade, da utilidade e do interesse geral, vem infiltrada pelo pensar, sentir e querer dos seres humanos. Nessa experiência está a gênese dos mandamentos religiosos, éticos e jurídicos. Tais mandamentos resultam da prudência, virtude mediante a qual se conhece e se pratica o que convém à vida coletiva e à vida individual e que implica moderação, cautela, serenidade, razoabilidade, proporcionalidade.

Os mandamentos jurídicos (normas) derivam da escolha política (tácita ou expressa) da comunidade, do legislador e do juiz, dentre as variáveis que se apresentam como adequadas ao bem da sociedade, em abstrato, e ao bem dos grupos dominantes e do Estado, em concreto. Daí, as decisões dos legisladores e dos juízes penderem, ora para o bem da sociedade e dos cidadãos, ora para o bem dos grupos e dos governantes. A interpretação, classificação e sistematização dessas normas pelos doutrinadores, constituem a dogmática jurídica. A interpretação e aplicação dessas normas pelos juízes, ao resolverem demandas no devido processo, constituem a jurisprudência.

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