sábado, 21 de março de 2009

CRISTO E ANTICRISTO
Antonio Sebastião de Lima

O episódio da excomunhão dos médicos e da mãe de uma menina de 9 anos submetida a cirurgia para extrair feto resultante de estupro, agitou a sociedade brasileira. Houve sérios questionamentos dentro e fora da Igreja. Autoridade do Vaticano tentou amenizar a decisão da autoridade eclesiástica brasileira. Autoridade política brasileira apoiou a decisão dos médicos e da mãe da menina. Católicos e protestantes se posicionaram a favor ou contra a sentença do arcebispo brasileiro. Fé e razão se confrontaram, novamente. As tentativas de conciliação apelando para uma fé racional ou para uma razão fiduciária são antigas e infrutíferas. Quando surge um fato concreto, como o dessa menina, as posições se extremam.

Na primeira fase da Idade Média (anos 400 a 800) os filósofos cristãos dividiam-se em 3 grupos: (i) os defensores da primazia do dogma (ii) os defensores da primazia da razão (iii) os ecléticos. A dogmática na filosofia cristã começa com Tertuliano: cristianismo é o sistema de leis sagradas aceito pela fé; o conhecimento intelectual merece desprezo; os dogmas da fé não estão sujeitos à prova da razão. A essa corrente pertenceram Ambrósio, Jerônimo e Gregório. Entre os cristãos racionalistas citam-se Clemente de Alexandria e Orígenes: a razão é a base fundamental do conhecimento religioso e secular. Agostinho situa-se entre os dogmáticos e os racionalistas: a fé está acima da razão, porém há necessidade de explicação intelectual para a crença; há verdade absoluta e eterna; há conhecimento instintivo implantado por Deus no espírito humano; há conceitos básicos que existem no ser humano desde o nascimento como reflexo da verdade eterna tais como: justiça e direito.

Nos séculos XII e XIII (1101-1300) a filosofia escolástica coloca a razão a serviço da fé. Filosofia a serviço da teologia. Todo conhecimento necessitava amparo das escrituras, dos padres, de Platão e de Aristóteles. O primeiro entre os cristãos racionalistas foi João Escoto Erígena, considerado o fundador da escolástica: no conflito entre razão e autoridade há de prevalecer a razão. Pedro Abelardo (1079–1142) monge francês, culto, moço e belo (vangloriava-se de conquistar qualquer mulher que lhe despertasse o amor) criou o realismo moderado. Os grandes dias da escolástica vieram pelas mãos de Alberto Magno e de seu discípulo Tomaz de Aquino, ambos dominicanos e professores na Universidade de Paris. Da obra de Tomaz sobressaem os propósitos de: (i) demonstrar a racionalidade do universo (ii) estabelecer o primado da razão. Tinha como plano cristão: justiça e paz na Terra e salvação da humanidade em um mundo vindouro. Acreditava na capacidade do homem para conhecer e compreender o mundo. Tomaz foi proclamado pelo papa Leão XIII (final do século XIX) filósofo oficial da igreja católica romana.

Desde a revolução científica no mundo ocidental, a partir do século XVII (1601/1700) a fé vem perdendo terreno para a razão. Graças ao avanço técnico no campo das comunicações, incluindo o processo de ensino e aprendizagem, parte da população (maior ou menor, conforme o país) tem acesso ao conhecimento científico. Pessoas comuns passaram a aderir ao questionamento das irracionalidades da religião, outrora limitado à elite moral e intelectual da Europa e da América. O Iluminismo concentrou luminares da inteligência humana nesses dois continentes, à semelhança do que ocorreu na Grécia nos séculos V a III a.C. Essa elite intelectual discordava da tirania religiosa e política; pugnava pela libertação do espírito humano dos grilhões dos dogmas irracionais e do artificialismo da igreja cristã.

Voltaire dizia que chamar Jesus de cristão era um insulto. A doutrina e o exemplo de Jesus eram completamente estranhos à igreja cristã. Acrescente-se a isso, que a palavra cristo, de origem grega, significa ungido, untado com óleo, sagrado, purificado. Aplica-se aos grandes vultos da vida mística, como Aquenaton, Zoroastro, Sidarta, Jesus, Gandhi. A igreja católica se diz cristã por se considerar herdeira da autoridade de Pedro conferida por Jesus. Falácia. Jesus autorizou todos os apóstolos a pregar e curar em seu nome. Por isso mesmo, o colégio apostólico era composto de um número par e não de número impar de apóstolos (12 e não 11 ou 13). Ímpar e insubstituível era Jesus. Pelo exemplo e pela palavra, Jesus pregou uma vida simples e natural, sem paixão pela riqueza, pelo poder ou pela fama, sem luxo ou ostentação.

A igreja católica (palavra de origem grega que significa universal) começou a se institucionalizar com Paulo de Tarso. Fariseu esperto e velhaco, Paulo viu no movimento dos apóstolos oportunidade de melhorar a sua situação. O Sinédrio lhe pagava para perseguir, prender e matar cristãos, dentro e fora da Palestina. Aderindo aos cristãos, Paulo tinha condições de liderança por sua superior formação intelectual e sua experiência como capitão de mato. O comando daquele movimento, que se mostrava firme e determinado, avassalador, poderia lhe proporcionar vida melhor (viajar pelo mundo, comer, beber e se vestir bem, dar ordens, ser festejado, paparicado e ainda ganhar dinheiro). Paulo inventou o encontro com Jesus no caminho de Damasco e que ficara cego com a forte luz que emanava do rabi. Ora, Jesus jamais cegaria alguém, pelo contrário, curava os cegos; a luz que dele irradiava não era física e sim espiritual; não cegava olhos, iluminava a alma (luz = compreensão).

A alegação de cegueira convinha a Paulo. Muitos discípulos conheciam Jesus pessoalmente. Descrever Jesus a esses discípulos seria embaraçoso. Paulo nunca vira Jesus. Sobre a pilastra farisaica, egoística e falsa ergueu-se a igreja católica institucionalizada, igreja que não é de Jesus, nem de Pedro e sim de Paulo. Daí as reservas quanto às mulheres no sacerdócio. Jesus admitia mulheres no apostolado e se casou com uma delas. Paulo as desprezava; emparelhava-as aos animais irracionais; vedava novo casamento às viúvas. Rituais, dogmas, sacramentos, penitências, simonia, celibato, tudo isso foi criado por fariseus com batina de padre para enganar os ignorantes (ricos e pobres). Como dizia Voltaire, o primeiro teólogo foi o primeiro velhaco que enganou o primeiro tolo.
Até o início da Idade Contemporânea (1918) a maioria da população européia e americana era de gente ignorante, analfabeta ou deficiente cultural, tanto das camadas ricas como das camadas pobres. Isto responde pelo sucesso e riqueza das religiões. Ainda neste século XXI pessoas enriquecem fundando igrejas, porque há tolos suficientes para segui-las e sustentá-las.

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