Amâncio – O quê sou eu?
Fabrício – Como assim? O quê sou eu! Você é você, pessoa de carne e osso tal como eu, ora bolas!
A – Tudo bem, mas, quem sou eu?
F – Você é meu amigo, casado com a bela Marisa, nossa colega dos tempos de colégio, pai da Maristela e do Marcos, mora em casa própria, num bairro calmo e arborizado da cidade, dirige o seu automóvel e faz caminhadas e escaladas.
A – Tudo bem, mas, o quê sou eu?
F - Caramba! Vá lá! Você é um organismo biológico humano, sexo masculino, nascido neste país, alto, robusto, esbanjando saúde, bem humorado, bonito aos olhos da Marisa, inteligente, engenheiro, sócio de empresa construtora, contribuinte do fisco municipal, estadual e federal.
A – Tudo bem, mas, quem sou eu?
F – Arre! Você é uma alma penada que abusa da minha paciência ao repetir, de modo enfadonho, a mesma pergunta, insatisfeito com as minhas respostas. Você é masoquista torcedor de clube de futebol que jamais foi campeão.
A – Chateado com meu questionamento, você apelou pra ignorância. Referiu-se ao time do meu coração, do qual não me envergonho, embora sabendo muito bem que eu também sou torcedor do Real Madrid, clube espanhol campeoníssimo. Ademais, sempre pensei que eu era um corpo com cabeça, tronco e membros, que respira, bebe, come, anda, trabalha, transa e dorme. Agora você diz que eu sou alma penada.
F – Amâncio, estimado amigo, reconheça: o teu questionamento aborrece. Falei alma penada porque você, eu e todos os humanos não vivemos só de prazeres e alegrias, mas também de privações, sofrimentos e tristezas. Na minha opinião, ora solicitada com insistência, você não é um corpo. Você tem um corpo habitado por uma alma personalizada.
A – Os animais irracionais também têm corpos. A valer tua opinião, eles também são almas viventes personalizadas.
F – Essa é a opinião de muita gente, porém, minha não é. Os irracionais não são pessoas e sim apenas seres vivos do reino animal. Os humanos também são seres vivos do reino animal submetidos às leis da natureza. Entretanto, gozam de autonomia de vontade para contrariá-las. Só não podem revogá-las. Sacrificam a natural sensualidade sob pressão de dogmas religiosos, de preconceitos sociais e de ficções jurídicas. Na concepção científica de Aristóteles, você, eu e todos os humanos somos animais portadores da capacidade específica de raciocinar e de ter consciência de si mesmos. Somos gregários por natureza e eremitas por decisão pessoal. Organizamo-nos em comunidades e sociedades. Criamos leis que nos conferem personalidade civil. Preservamos a ordem quando conservadores. Promovemos a desordem quando liberais. Primamos pela obediência. Praticamos a desobediência. Seguimos a razão. Sucumbimos ao sentimento dela excludente.
A – Fabrício, meu estimado amigo, retribuo o afetuoso tratamento. Você passou da existência para a essência nesta análise do eu exterior e do eu interior da minha pessoa. Ajudou-me na trilha do “conhece-te a ti mesmo”, aberta por Hipócrates, inscrita no frontispício do templo de Delfos e adotada por Sócrates na sua filosofia. Você considerou a alma principal e o corpo acidental. Discordo dessa colocação. Eu não tenho corpo. Eu sou um corpo enquanto viver neste mundo. O meu corpo ramifica-se em físico e mental. Tenho dúvida sobre a fonte do mental, se cerebrina ou se anímica. “Cogito ergo sum” afirmou Descartes. “Penso, logo existo”. Esse pensar é função do cérebro ou da alma? Esta pergunta só terá sentido se acreditarmos na existência autônoma da alma como substância autoconsciente, imaterial, invisível, de origem divina ou sobrenatural. Eu não creio nesse trato metafísico. Inclino-me a acreditar na alma como energia fundamental do universo, independentemente da questão sobre a existência ou inexistência de deus. Alma como força motriz de todos os seres vivos e geratriz dos pensamentos e sentimentos humanos.
F – Sinto muito, meu caro Amâncio, mas não estou apto a te ajudar na busca do conhecimento desse aspecto subjetivo da tua personalidade. Trata-se do minado campo de crenças cultivado pela humanidade no curso da história. Atrevo-me a dizer apenas que os teus pensamentos, os teus sentimentos, os teus propósitos e ações, têm muito a ver com a tua experiência de vida, desde a tua infância até a idade presente. A psicanálise deu um cunho científico ao exame desse campo anímico da vida humana e contribuiu para as pessoas conhecerem melhor a si mesmas. Quanto mais descobertas a ciência fizer sobre a mecânica do psiquismo humano, maiores serão as chances de refinamento das relações humanas na sociedade e no estado. O sistema educacional se aperfeiçoará. O sentimento afetuoso, amigável, solidário, ampliar-se-á. Os instintos selvagens ficarão sob controle. Conflitos serão menos frequentes.
A – A conversa está boa, cerveja gelada, salgadinho bem preparado e temperado pelo Tonico, neste bar pequeno, limpo e providencial, próximo à cancha. Está na hora de pegar o rumo de casa, tomar banho e almoçar com a mulher e os filhos. Até sábado. Abraço.
F – Até sábado. Você esqueceu de mencionar o cálix e a oferenda ao orixá que antecedem o primeiro copo. Eu vou ficar aqui um pouco mais. A nossa turma do futebol sabático está menos numerosa do que há 10 anos atrás. Vida que flui. Abraço.
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